Dezembro.
1265
«(…) A qualidade de bibliotecário
permitira a Ubertino retirar do cinturão do abade o chaveiro de ferro que continha
duas chaves, uma que abria a porta da biblioteca, da qual já tinha uma cópia, e
outra que abria o baú que se encontrava no seu interior, chave esta que, até
àquele momento, só o abade possuíra. Aproveitou a tranquilidade do momento para
se dirigir ao scriptorium. Entrou naquele espaço, onde copistas e
iluminadores iniciavam já o seu trabalho, colocando sobre as mesas em forma de
púlpito, com uma minúcia serena, os utensílios de trabalho necessários.
Atravessou aquele espaço comprido, de tectos altos e janelões amplos que se
abriam, de um lado, sobre a galeria do claustro e, do outro, sobre o pomar. As
carteiras tinham sido colocadas perto das janelas para que os monges
desfrutassem de toda a luz possível. Apesar de o silêncio ser uma regra
imprescindível para uma adequada concentração dos copistas no seu trabalho,
Ubertino apercebeu-se de que, naquele dia, o silêncio era ainda mais profundo,
como se uma tristeza plúmbea embargasse a vontade daqueles homens dedicados a
registar o saber em pergaminhos para que este perdurasse pelos tempos fora.
Ao fundo do scriptorium
encontrava-se a porta que dava acesso à biblioteca, ampliada várias vezes desde
que Ubertino fora nomeado librarium e, agora, com as dimensões e a
solenidade adequadas para albergar o seu conteúdo único e portentoso. Ubertino
abriu a porta com a sua chave e tornou a trancá-la depois de entrar, para que
ninguém o incomodasse. Levava na mão uma pequena candeia com uma vela acesa,
para iluminar a estreita escada que o levaria ao andar de cima. Subiu e entrou
no recinto. Esperou alguns instantes, observando, à luz bruxuleante da sua
vela, aquele lugar de culto ao conhecimento. Era um espaço escuro, com tectos
muito altos graças a uma abóbada erigida recorrendo à técnica que se tornara
tão famosa na construção de algumas catedrais que pareciam chegar ao céu.
Porém, ao contrário destas, a biblioteca não tinha janelões enormes. Em lugar
daquelas enormes janelas, as paredes que admirava Ubertino estavam cobertas de
prateleiras de madeira, estantes que iam do chão à base do próprio arco, e de
armários fechados, tudo isto servindo de zeloso regaço ao saber de todo o mundo,
reunido em códices. Apenas havia três pequenas janelas na parte superior da
cúpula, suficientes para deixarem passar alguma claridade, evitando, no
entanto, que a intensidade da luz e as variações de temperatura afectassem o
conteúdo daquele lugar sagrado.
Ubertino dirigiu-se ao único baú
que ali havia, uma caixa enorme de madeira talhada e guarnecida com tachões de
metal dourado nas quinas. Encontrava-se ao pé de uma carteira onde vira o abade
inúmeras vezes, lendo e escrevendo sozinho, à luz de uma candeia que só ele podia
utilizar. Aquele era um privilégio seu no mosteiro, porque ninguém, para além
dele, podia permanecer naquele local durante mais tempo do que o estritamente
necessário, e sempre com a companhia do librarium ou do seu ajudante. Ubertino
acendeu a candeia de azeite que se encontrava sobre a carteira, esquecida pelo
respectivo dono desde havia meses, e apagou, de um sopro, a vela que levava na
mão. Em seguida, pôs-se diante do baú e acariciou-o como se de um objecto
sagrado se tratasse. Introduziu a chave na fechadura de ferro e ergueu a tampa,
que produziu um chio tão cortante que parecia que se abriam as portas do
Universo.
Ficou
a olhar para o interior, forrado com um tecido vermelho algo puído nos lados.
No fundo, lá estava a bolsa de pele que vira o abade transportar em tantas
ocasiões. Recordou que o ancião à levava às costas, pendurada, no dia em que o
conheceu. Pegou nela e colocou-a sobre a carteira. Sentiu um calafrio, sem
saber se se devia ao facto de se sentir psicologicamente abalado ou à dolorosa
visão daquelas coisas que faziam já parte do passado. Meteu a mão no interior
escuro e deu com um manuscrito volumoso, encadernado com uma capa simples de
madeira, forrada a couro de cabra curtido de cor parda e com os cantos gastos
pelo uso. Não tinha qualquer inscrição. Abriu o manuscrito com cuidado,
ouvindo, assustado, os estalidos da pele e abrandou o movimento para evitar que
o pergaminho se rasgasse ou estragasse. Sentiu-se algo desconcertado, porque
sentiu o coração bater mais forte. A letra era miúda e muito clara e o texto
estava escrito em latim culto em ambas as páginas de cada folha, para
aproveitar ao máximo o espaço do couro. Sentou-se no banco de madeira, aconchegou
a túnica de frade para se proteger do frio e começou a ler. A primeira folha
continha a seguinte inscrição, a tinta vermelha e com letra tremida: Brisa do Oriente». In Paloma Shanchez-Garnica, A
Brisa do Oriente, 2009, tradução de Luís Coputinho, Saída de Emergência, 2012,
ISBN 978-989-637-411-2.
Cortesia
SEmergência/JDACT