quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «Dirigiu-se ao estranho. Permita-me que o cumprimente, a pronúncia francesa saiu-lhe irrepreensível. O meu nome é Jean»

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«(…) Os navios mais pequenos já só são necessários porque lá para o fim da fila já nem se consegue ver o navio-almirante! Por isso, os pequenos servem para retransmitir os sinais das bandeiras, e de resto para mais nada. Compare lá a montanha que é este navio com aquelas corvetas ali. Tem noção de que só neste couraçado está reunida uma floresta inteira de carvalhos? E depois mais uns quantos milhares de quilos de ferro dos canhões. A tripulação, os víveres, a pólvora, o chumbo… É um milagre que o navio flutue com tamanha segurança. O bote deteve-se. Ali estavam eles. Os remadores recolheram os remos. Pelas escadas de corda que o comandante mandara prender à amurada a bombordo treparam os guardas portuários para o navio. Seguiu-se-lhes o fiscal da Inquisição (maldita). Conhecia-o? Antero examinou de passagem o rosto dele. Não. Enquanto os marinheiros andavam descalços e até mesmo os oficiais do navio mais não tinham nos pés do que calçado simples com atacadores, os sapatos dos três homens exibiam dispendiosas e brilhantes fivelas. Ambos os guardas portuários recolheram os respectivos chapéus debaixo do braço e esboçaram uma vénia diante do comandante. Bem-vindo a Lisboa, senhor comandante. Enquanto isso, o terceiro homem retirou do bolso, preso a uma corrente prateada, o seu relógio e, com um ar carrancudo, olhou para o mostrador. As unhas dos seus polegares eram pontiagudas e compridas. Antero olhou para ele com atenção. Aquele relógio era semelhante ao seu, do mesmo modo que um ovo se assemelha a outro. Foi como se um prego em brasa se lhe cravasse no cérebro. Tudo o que nele havia do francês de há pouco evaporou-se por instantes. Era apenas e só o contrabandista, a ratazana que é perseguida e encurralada. Tinham enviado um discípulo de Malagrida.
Um lobo à caça, foi o pensamento que passou pela cabeça de Antero. À excepção das invulgares unhas dos polegares, a impressão criada pelo homem era a de alguém civilizado. Tanto o jaquetão como o colete exibiam uma fila de botões de formato semiesférico. Das mangas da sua casaca saíam punhos de renda, e em redor do pescoço havia um lenço branco. Os discípulos de Malagrida tinham de se apresentar bem vestidos, afinal de contas era nos melhores círculos que se moviam. Não deixavam, porém, de ser, na verdade, feras sob disfarce. Por baixo do calção trazia vestidas meias até ao joelho imaculadamente brancas. Usava ainda uma peruca. Não, o cabelo era mesmo dele! Um homem que quisesse dar-se ao respeito jamais saía à rua sem uma peruca. A opinião das pessoas não era com certeza algo que o preocupasse. Tinha autoconfiança e era senhor de si mesmo. Antero não admitia atribuir este encontro ao acaso. Dirigiu-se ao estranho. Permita-me que o cumprimente, a pronúncia francesa saiu-lhe irrepreensível. O meu nome é Jean. Sou passageiro deste navio e esta é a minha primeira visita a Portugal. Que será que devo fazer quando chegar ao porto? Deverei comunicar a minha presença algures? O olhar impassível do estranho ficou preso no seu rosto. Que quer dizer com isso? Em Portugal, segundo se diz, a Inquisição (maldita) anda sempre no encalço das pessoas. Pronuncia-se sobre todo e qualquer passo que se queira dar. Não quereria, logo de início, começar por fazer qualquer coisa mal. Os marinheiros, agitados, faziam-lhe sinais. Os seus rostos estavam lívidos. Antero não vacilou sequer. Acrescentou ainda: ouvi dizer que qualquer um me pode denunciar. O meu próprio criado, o meu notário ou qualquer pessoa que passa na rua, gente que eu nem sequer conheço. Isso é verdade? Melhor será que se mantenha de boca fechada, homem, o estranho dirigiu-se ao comandante. Nome e nacionalidade do navio? Chama-se Fortune, respeitável senhor, e é sob pavilhão britânico que navegamos. O comandante Wrightson trouxe a manga até junto da boca e tossiu. O nome do proprietário? Adam Bromley. Número de passageiros? Número de tripulantes? Um passageiro, trinta e quatro marinheiros. Religião? Somos todos protestantes, à excepção de Robert Scott, o grumete, esse é católico. O estranho inspirou vigorosamente». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

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