quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «O bote passou junto de um batelão carregado com tonéis que haviam sido impermeabilizados e estavam agora a ser transportados para a margem»

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«(…) A luz do Sol causava na água, de um verde-azulado, a cintilação própria de um diamante. Entre os imponentes bojos dos navios, as gaivotas baloiçavam sobre as ondas, como se estivessem à espera de alguma coisa. Os guardas portuários olhavam atentamente para o navio que tinham em frente. Conseguiam ver Antero, de pé, encostado à amurada. Eis que chegara a hora decisiva. Teria agora mesmo de se fazer passar por um viajante francês, forçando o contrabandista ao exílio nos recantos mais profundos da sua consciência. Antero respirou fundo. Como veria um visitante de França o porto de Lisboa? Um visitante que aqui tivesse vindo pela primeira vez? Com um ar curioso, debruçou-se sobre a amurada. Olhou em redor, enquanto assobiava baixinho uma melodia francesa. Em redor do Fortune estavam fundeadas embarcações de carga, holandesas, chamadas fluyts e esbeltas pinaças francesas. Para as bandas do porto militar, conseguia ver fragatas e um couraçado recheado de canhões. Mais atrás, quatro corvetas eram embaladas pelas vagas. Ao longe, a frota do Brasil aguardava. Seriam possivelmente uns cinquenta navios, sobretudo galeões, cujos castelos da popa se erguiam em altura, bem acima do nível das águas. Ao pé destes, as naus e caravelas, mais pequenas e mais antigas, tinham um aspecto miserável. Nas proximidades, a escolta, formada por oito imponentes navios de guerra, velava por todas essas embarcações. Quando vinha do Brasil, um comboio daqueles deveria valer alguns sete ou oito milhões de coroas de ouro. A protecção da escolta era uma necessidade. Só formando uma flotilha poderiam os navios resistir aos ataques dos piratas.
A Companhia do Comércio do Brasil trocava pau-brasil por farinha, vinho, peixe seco e azeite, que depois eram levados para o Brasil. Outros comerciantes, que, com os seus navios, se haviam juntado ao comboio, traziam açúcar das plantações de cana, para além de cacau, peles de bovinos e ouro. Os bens que abasteciam um território inteiro eram transportados por mar. Antero conhecia bem esse negócio. Voltava-se sempre à discussão sobre se não seria melhor acabar de vez com o comboio. As desvantagens daquele procedimento eram óbvias: quando os navios chegavam a Portugal, eis que o mercado ficava por algum tempo saturado com os produtos vindos do ultramar. Quem ousasse encetar a viagem sozinho, numa outra altura do ano, poderia, com os mesmos produtos, ver os seus ganhos multiplicados. Ou então quem ousasse contrabandear, ao arrepio de todas as determinações, proibições e cobranças de impostos. Antero forçou-se a reprimir tais ideias. Não poderia agora, enquanto desempenhava aquele papel, cometer quaisquer deslizes. Distendeu os membros e fingiu observar o bote dos guardas portuários sem qualquer medo, sem se deixar tomar pela sensação que nem sequer deveria olhar nessa direcção.
O bote passou junto de um batelão carregado com tonéis que haviam sido impermeabilizados e estavam agora a ser transportados para a margem. Os guardas portuários examinaram-nos com um ar severo. Os tonéis poderiam conter fosse o que fosse: peles, vinho, especiarias, azeite, ou cereais, mercadorias descarregadas de um navio mercante. Ou estavam vazios e iriam ser enchidos com água potável e provisões. Está a ver aquele couraçado ali?, o carpinteiro de bordo chegou-se junto dele. Três cobertas, noventa e oito canhões. É uma loucura, não é? Em tempos, ainda se faziam abordagens aos navios inimigos em alto mar. Hoje em dia, navegam por aí esses colossos. Mas ainda acontecem abordagens, os piratas… Disparate! Já ninguém pensa em abordagens. As frotas colocam-se uma em frente da outra, formando duas longas filas de navios, colocou as palmas das mãos uma junto da outra. Depois desatam as bocas-de-fogo a disparar, até que um dos lados se retire, por já ter os mastros a voarem-lhe junto das orelhas. Ah, sim… Surpreendente». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

Cortesia Cletras/JDACT