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A luz do Sol causava na água, de um
verde-azulado, a cintilação própria de um diamante. Entre os imponentes bojos
dos navios, as gaivotas baloiçavam sobre as ondas, como se estivessem à espera
de alguma coisa. Os guardas portuários olhavam atentamente para o navio que
tinham em frente. Conseguiam ver Antero, de pé, encostado à amurada. Eis que
chegara a hora decisiva. Teria agora mesmo de se fazer passar por um viajante
francês, forçando o contrabandista ao exílio nos recantos mais profundos da sua
consciência. Antero respirou fundo. Como veria um visitante de França o porto
de Lisboa? Um visitante que aqui tivesse vindo pela primeira vez? Com um ar
curioso, debruçou-se sobre a amurada. Olhou em redor, enquanto assobiava
baixinho uma melodia francesa. Em redor do Fortune estavam fundeadas embarcações de carga, holandesas,
chamadas fluyts e esbeltas pinaças francesas. Para as
bandas do porto militar, conseguia ver fragatas e um couraçado recheado de
canhões. Mais atrás, quatro corvetas eram embaladas pelas vagas. Ao longe, a
frota do Brasil aguardava. Seriam possivelmente uns cinquenta navios, sobretudo
galeões, cujos castelos da popa se erguiam em altura, bem acima do nível das
águas. Ao pé destes, as naus e caravelas, mais pequenas e mais antigas, tinham um aspecto miserável. Nas
proximidades, a escolta, formada por oito imponentes navios de guerra, velava
por todas essas embarcações. Quando vinha do Brasil, um comboio daqueles
deveria valer alguns sete ou oito milhões de coroas de ouro. A protecção da
escolta era uma necessidade. Só formando uma flotilha poderiam os navios
resistir aos ataques dos piratas.
A Companhia do Comércio do Brasil
trocava pau-brasil por farinha, vinho, peixe seco e azeite, que depois eram
levados para o Brasil. Outros comerciantes, que, com os seus navios, se haviam
juntado ao comboio, traziam açúcar das plantações de cana, para além de cacau,
peles de bovinos e ouro. Os bens que abasteciam um território inteiro eram
transportados por mar. Antero conhecia bem esse negócio. Voltava-se sempre à
discussão sobre se não seria melhor acabar de vez com o comboio. As desvantagens
daquele procedimento eram óbvias: quando os navios chegavam a Portugal, eis que
o mercado ficava por algum tempo saturado com os produtos vindos do ultramar.
Quem ousasse encetar a viagem sozinho, numa outra altura do ano, poderia, com
os mesmos produtos, ver os seus ganhos multiplicados. Ou então quem ousasse
contrabandear, ao arrepio de todas as determinações, proibições e cobranças de
impostos. Antero forçou-se
a reprimir tais ideias. Não poderia agora, enquanto desempenhava aquele papel,
cometer quaisquer deslizes. Distendeu os membros e fingiu observar o bote dos
guardas portuários sem qualquer medo, sem se deixar tomar pela sensação que nem
sequer deveria olhar nessa direcção.
O bote passou junto de um batelão
carregado com tonéis que haviam sido impermeabilizados e estavam agora a ser
transportados para a margem. Os guardas portuários examinaram-nos com um ar
severo. Os tonéis poderiam conter fosse o que fosse: peles, vinho, especiarias,
azeite, ou cereais, mercadorias descarregadas de um navio mercante. Ou estavam
vazios e iriam ser enchidos com água potável e provisões. Está a ver aquele
couraçado ali?, o carpinteiro de bordo chegou-se junto dele. Três cobertas,
noventa e oito canhões. É uma loucura, não é? Em tempos, ainda se faziam abordagens
aos navios inimigos em alto mar. Hoje em dia, navegam por aí esses colossos. Mas
ainda acontecem abordagens, os piratas… Disparate! Já ninguém pensa em
abordagens. As frotas colocam-se uma em frente da outra, formando duas longas
filas de navios, colocou as palmas das mãos uma junto da outra. Depois desatam
as bocas-de-fogo a disparar, até que um dos lados se retire, por já ter os
mastros a voarem-lhe junto das orelhas.
Ah, sim… Surpreendente». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010,
Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.
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