sábado, 24 de fevereiro de 2018

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «Tens porventura conhecimento do auto que levou a cena com o nome El-Rei Seleuco? Quer-me parecer que aí foi Luís Vaz longe de mais»

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Catarina Ataíde. Oaço Real de Almeirim. 5 de Outubro. 1548
«(…) Certa tarde de Outono, bordava eu com as demais damas da infanta dona Maria na sala velha do Paço de Almeirim quando de súbito, e a propósito de nada, Sua Majestade, a Rainha, me perguntou: que novas tens desse teu poeta, dona Catarina Ataíde? Fiquei em sobressalto e as cores tingiram-me o rosto de uma vermelhidão tal que todas as damas repararam. Foi por Deus que as espirituosas e doutas irmãs Sigeia, Ângela e Luísa, bem como a minha boa amiga Paula Vicente, filha do mestre Gil, vieram em meu auxílio. Vendo-me assim alvoraçada, Ângela Sigeia e Paula Vicente foram de prestes buscar o alaúde, pondo-se a tanger bem alto, a fim de distrair a Rainha. Dona Catarina é astuta e tem por uso conhecer já a resposta para tudo o que pergunta. Entretinha-se, portanto, a pôr-me à prova. Acabado o recital, deu uma festa ao seu podengo Bejayo, que batia ruidosamente com a cauda no soalho, e tornou à conversa. O que sabes tu de Luís Vaz? Díz-me! Ora, Alteza, quase nada sei, além dos sonetos que me escreve e de que vós tendes conhecimento. Vistes por vossos olhos, Alteza, quão galante é Luís Vaz a poetar. Com efeito, dona Catarina Ataíde, não é porém à poesia que me refiro, mas ao carácter. Tens porventura conhecimento do auto que levou a cena com o nome El-Rei Seleuco? Quer-me parecer que aí foi Luís Vaz longe de mais. Fui colhida de surpresa. Luís Vaz nada me contara de tal auto. Só me falara a respeito de Lilodemo e dos Enfatriões e até me representar partes inteiras, como se estivesse no Pátio das Comédias, que muito bem me dispuseram.
Olhei de relance para Luísa Sigeia. Iria defendê-lo? Luísa dominava o latim e o grego e terminara havia pouco um poema, Sintra. Eu já prometera levar-lho a Luís Vaz, para que o lesse e sobre ele opinasse, mas não foi Luísa quem me salvou. Eu estava na sala, irrompeu Paula Vicente, com uma vénia. E se Vossa Alteza me permite, terei de discordar. Luís Vaz não pretendeu outra coisa que não levar a cena uma comédia à moda de Plutarco. São bem caçadas as personagens: Ambrósio, Lançarote, Frolalta, Martirn Chinchorro..., bem gostaria de ter estado em palco, actuando, como no tempo do senhor meu pai, o Plauto Português. Como ousava Paula Vicente contrariar a Rainha? Estás enganada, Paula Vicente, o senhor teu pai, o nosso muito querido mestre e amigo Gil Vicente, como bem sabes, posto que te encontras agora a compilar as suas obras, não pretendia magoar ninguém. No Auto da Visitação, por exemplo, celebra o nascimento de El-Rei, meu marido. Mas mesmo nas Barcas, em quem Tem Farelos, na Farsa de Inês Pereira, ou no último auto que escreveu, Amadis de Gaula, sabia fazer-nos rir com o picaresco saber popular das suas farsas e comédias. Lembro-me bem de como, a um tempo reproduzia a gíria atrevida das gentes desta terra e usava belas e saborosas alegorias que nos levavam a reflectir. Não é assim com Luís Vaz: disse-me a minha cunhada, a infanta dona Maria, que, tal como vós, assistiu à representação, que aquilo que ali se passou foi uma afronta. Veio de lá toda enxofrada! Confidenciou-me que o poeta escreveu o auto de um dia para o outro, em cima do joelho e por encomenda de Estácio Fonseca. Com tantos assuntos para levar a cena, foi precisamente dramatizar o tema doloroso do filho apaixonado pela mulher do pai». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.

Cortesia de OdoLivro/JDACT