terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Escombros. Elena Ferrante. «… fixei com palavras minhas, e esse segundo acto imaginativo, quer queira, quer não, terá de se confrontar, de forma irónica?, de forma trágica?, com o primeiro…»

jdact

Papéis. 1991-2003
Escrever por encomenda
«(…) Numa das muitas casas em que morei quando era rapariga, todos os anos nascia um pé de alcaparreira na parede voltada para leste. Era de pedra nua, mal enjorcada, não havia semente que não encontrasse ali um torrão. Mas aquela alcaparreira, sobretudo, crescia e floria de forma tão exuberante, e por outro lado com cores tão delicadas, que me ficou na memória uma imagem de verdadeira força, de suave energia. O camponês que nos alugava a casa ceifava as plantas todos os anos, mas em vão. Quando embelezou a parede com reboco, aplicou-lhe uma camada uniforme com as próprias mãos e depois pintou-a de um azul-celeste insuportável. Esperei muito tempo, confiante, que as raízes da alcaparreira mesmo assim levassem a melhor e de repente empolassem a lisura calma da parede. Hoje, enquanto procuro a via das felicitações para a minha editora, ouço dizer que isso aconteceu. O reboco criou bolhas, a alcaparreira explodiu com os primeiros rebentos. Por isso desejo que a e/o continue a lutar contra o reboco, contra tudo aquilo que harmoniza, apagando. Que o faça abrindo teimosamente. de estação em estação, livros como flores de alcaparreira(o acontecimento a que se faz referência é o décimo quinto aniversário das Edições e/o (1994); o texto, em pé de página na carta, foi incluído no catálogo da editora impresso para essa ocasião).

O livro encenado
Caro Sandro,
É claro que tenho curiosidade, estou morta por ler o guião de Martone, assim que o recebas, peço-te que mo envies imediatamente. Receio, porém, que lê-lo não sirva para mais nada senão para satisfazer a minha curiosidade, que para mim se resume a perceber o que há no meu livro que alimentou e está a alimentar o projeto de filme de Martone, qual o seu ponto sensível que o texto tocou, como é que desencadeou as suas capacidades imaginativas. Em relação ao resto, pensando bem, prevejo vir a encontrar-me numa situação um tanto ridícula, um tanto embaraçosa: serei leitora do texto de outra pessoa, que me contará uma história escrita por mim; com base nas palavras dele, imaginarei aquilo que já imaginei, vi, e fixei com palavras minhas, e esse segundo acto imaginativo, quer queira, quer não, terá de se confrontar, de forma irónica?, de forma trágica?, com o primeiro; portanto, serei leitora de um leitor meu, que me contará à sua maneira, com os seus meios, com a sua inteligência e sensibilidade, aquilo que leu no meu livro. Como reagirei, não sei dizer-te. Tenho medo de descobrir que pouco sei sobre o meu próprio livro. Receio ver na escrita de outra pessoa (um guião tem uma escrita especial, imagino, mas que pretende sempre contar uma história) aquilo que eu realmente contei, e não gostar; ou de constatar a sua fraqueza; ou simplesmente de me aperceber daquilo que falta, daquilo que eu devia ter contado e por incapacidade, por medo, por escolhas literárias auto-limitadoras, por superficialidade do olhar, não contei». In Elena Ferrante, Escombros, 2003, Relógio d’Água Editores, 2016, ISBN 978-989-641-666-9.

Cortesia de Relógio d’AguaE/JDACT