A
Imobilidade
«(…)
Um silêncio brusco entrecortado
pelos passos dela. A mulher detém-se no cimo da escadaria de pedra velha,
carcomida. A imobilidade dos seus olhos adere às paredes, ao chão, à pedra, à
noite imobilizada entre as suas pernas. A escada contorna uma curva, lá em
baixo. Desce. Mas por enquanto, daqui, vemo-la ainda quieta, o gesto detido
perto das ancas, ambas as mãos abertas coladas ao fato, ambos os punhos
cerrados colados aos lábios. Sabemos que olha, que olha assim as casas: as portas
estreitas das casas, as janelas pequenas escuras. Sabemos e sentimos o seu
horror, um terror que lhe escapa sem ruído e nos envolve cá em baixo, enquanto
a esperamos. Desce. Daqui vemo-la descer e hesitar perante cada porta, como se
pretendesse entrar ou como se tivesse que entrar e tentasse fugir no último
momento ao sentir o bafo húmido daqueles buracos sombrios lamberem-lhe a pele,
os braços nus. Desce. Vemo-la descer esquecida da nossa presença aqui,
esquecida dos seus passos demorados atrás de nós, alheia, a pegar-se àquelas
paredes, àquelas casas, a toda aquela
pedra imemorial, secular, presa de um terror, de um medo informe, crescente,
sempre que se cruza com alguém daqui, sempre que o seu olhar se perde dentro
dos fétidos buracos escancarados das janelas. Ei-la que pára ainda. Não a
chamamos. Aguardamo-la tomados em parte pelo seu pavor, pregados a um silêncio
quase louco no centro deste calor sem perdão que hoje percorre a cidade,
principalmente esta parte da cidade, nascida como que espontaneamente na
encosta suave de uma colina. Sem nos movermos, sem nos cansarmos, vemo-la
descer, hesitar, olhar crispada para dentro das casas, ambas as mãos abertas
coladas ao fato, ambos os punhos cerrados colados aos lábios, esquecida da
nossa presença, sem se pensar observada: esquecida de tudo, tomada apenas por
um pânico intenso. Os saltos largos dos seus sapatos brancos têm na pedra
carcomida um som em desequilíbrio constante e o azul lavrado do fato de seda
natural, leve, solto, repercute-se estranhamente na cor cinzenta das paredes.
Não é um contraste: é estranho como não é um contraste mas sim uma afirmação,
ali. Apenas uma mulher. A mulher desce a escadaria de pedra secular e é como se
tivesse estado sempre lá através dos anos. Passa os dedos de demoradamente como
se apalpasse um corpo de homem novo, adormecido, e o quisesse apenas sentir sem
o acordar. Desce. Sem saber que se afastou de nós, nem que a esperamos, olha
como se reconhecesse algo, como se temesse a memória ou o futuro, como se se previsse ali para sempre e não
pudesse fugir. Move as pernas como num sonho, devagar, devagar, devagar: os
cabelos pesando na claridade dos olhos, devagar, devagar, os dedos devagar
pelas paredes num tactear brando, estonteado, devagar..., devagar...,
devagar..., estonteado. Olha-mo-la suspensos dos seus gestos, do seu voltear
demorado à medida que desce para o largo onde a esperamos emudecidos,
extáticos, abrangidos pelo seu terror, pelo seu medo sem memória. Ali. A mulher
desce, tropeçando por vezes como se tivesse bebido, mas logo se equilibra
encostando-se à pedra cinzenta, enegrecida das casas, ao umbral de uma porta, e
deixa cair a cabeça sobre um dos ombros descobertos pela alça estreita do
vestido. Daqui vemos o volto que se vai aproximando dela; através da sombra
acastanhada do buraco que a porta escancara, descobre, vai-se aproximando
trôpego, curvado, um pouco curvado apenas, menos do que nos parecera ao
princípio, afinal. Ela ainda não o viu, talvez tenha os olhos fechados,
cansada. A mulher, no limiar do portal, olha-a como nós, sem qualquer surpresa.
Fixa-lhe apenas o vestido, os sapatos, os braços nus, o pescoço encoberto, os
cabelos, o vestido, a boca, o vestido. Sem idade, olham-se. Há quanto tempo
teria aberto os olhos? Desencosta-se, devagar. Vemo-la desencostar-se devagar
sem deixar de se fitarem, as mãos tremem-lhe agarradas ao fato, agarradas à
boca. Recua debaixo do olhar seco da outra. Será uma acusação?» In
Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América,
colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.
Cortesia de PEAmérica/JDACT