domingo, 11 de fevereiro de 2018

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «Vemo-la desencostar-se devagar sem deixar de se fitarem, as mãos tremem-lhe agarradas ao fato, agarradas à boca. Recua debaixo do olhar seco da outra. Será uma acusação?»

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A Imobilidade
«(…) Um silêncio brusco entrecortado pelos passos dela. A mulher detém-se no cimo da escadaria de pedra velha, carcomida. A imobilidade dos seus olhos adere às paredes, ao chão, à pedra, à noite imobilizada entre as suas pernas. A escada contorna uma curva, lá em baixo. Desce. Mas por enquanto, daqui, vemo-la ainda quieta, o gesto detido perto das ancas, ambas as mãos abertas coladas ao fato, ambos os punhos cerrados colados aos lábios. Sabemos que olha, que olha assim as casas: as portas estreitas das casas, as janelas pequenas escuras. Sabemos e sentimos o seu horror, um terror que lhe escapa sem ruído e nos envolve cá em baixo, enquanto a esperamos. Desce. Daqui vemo-la descer e hesitar perante cada porta, como se pretendesse entrar ou como se tivesse que entrar e tentasse fugir no último momento ao sentir o bafo húmido daqueles buracos sombrios lamberem-lhe a pele, os braços nus. Desce. Vemo-la descer esquecida da nossa presença aqui, esquecida dos seus passos demorados atrás de nós, alheia, a pegar-se àquelas paredes, àquelas casas, a toda aquela pedra imemorial, secular, presa de um terror, de um medo informe, crescente, sempre que se cruza com alguém daqui, sempre que o seu olhar se perde dentro dos fétidos buracos escancarados das janelas. Ei-la que pára ainda. Não a chamamos. Aguardamo-la tomados em parte pelo seu pavor, pregados a um silêncio quase louco no centro deste calor sem perdão que hoje percorre a cidade, principalmente esta parte da cidade, nascida como que espontaneamente na encosta suave de uma colina. Sem nos movermos, sem nos cansarmos, vemo-la descer, hesitar, olhar crispada para dentro das casas, ambas as mãos abertas coladas ao fato, ambos os punhos cerrados colados aos lábios, esquecida da nossa presença, sem se pensar observada: esquecida de tudo, tomada apenas por um pânico intenso. Os saltos largos dos seus sapatos brancos têm na pedra carcomida um som em desequilíbrio constante e o azul lavrado do fato de seda natural, leve, solto, repercute-se estranhamente na cor cinzenta das paredes. Não é um contraste: é estranho como não é um contraste mas sim uma afirmação, ali. Apenas uma mulher. A mulher desce a escadaria de pedra secular e é como se tivesse estado sempre lá através dos anos. Passa os dedos de demoradamente como se apalpasse um corpo de homem novo, adormecido, e o quisesse apenas sentir sem o acordar. Desce. Sem saber que se afastou de nós, nem que a esperamos, olha como se reconhecesse algo, como se temesse a memória ou o futuro, como se se previsse ali para sempre e não pudesse fugir. Move as pernas como num sonho, devagar, devagar, devagar: os cabelos pesando na claridade dos olhos, devagar, devagar, os dedos devagar pelas paredes num tactear brando, estonteado, devagar..., devagar..., devagar..., estonteado. Olha-mo-la suspensos dos seus gestos, do seu voltear demorado à medida que desce para o largo onde a esperamos emudecidos, extáticos, abrangidos pelo seu terror, pelo seu medo sem memória. Ali. A mulher desce, tropeçando por vezes como se tivesse bebido, mas logo se equilibra encostando-se à pedra cinzenta, enegrecida das casas, ao umbral de uma porta, e deixa cair a cabeça sobre um dos ombros descobertos pela alça estreita do vestido. Daqui vemos o volto que se vai aproximando dela; através da sombra acastanhada do buraco que a porta escancara, descobre, vai-se aproximando trôpego, curvado, um pouco curvado apenas, menos do que nos parecera ao princípio, afinal. Ela ainda não o viu, talvez tenha os olhos fechados, cansada. A mulher, no limiar do portal, olha-a como nós, sem qualquer surpresa. Fixa-lhe apenas o vestido, os sapatos, os braços nus, o pescoço encoberto, os cabelos, o vestido, a boca, o vestido. Sem idade, olham-se. Há quanto tempo teria aberto os olhos? Desencosta-se, devagar. Vemo-la desencostar-se devagar sem deixar de se fitarem, as mãos tremem-lhe agarradas ao fato, agarradas à boca. Recua debaixo do olhar seco da outra. Será uma acusação?» In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América, colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT