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Prólogo
«A
quinta-essência, espírito dos elementos, vendo-se aprisionada pela alma do corpo
humano, deseja sempre regressar ao seu mandatário. E vós, sabei que este desejo
existe na quinta-essência companheira. E o homem é modelo do mundo. Aprende a
multiplicação das raízes com o mestre Luca». In apontamentos de Leonardo da Vinci
E era assim que acontecia também em
Sforzinda, a cidade perfeita desenhada por Filarete, em estrela de oito torres,
inscrita no círculo e no octógono, com os seus bastiões, e os muros possantes.
Que estava agora seriamente ameaçada pelas forças obscuras e agressivas do Esquecimento,
do Primeiro Caos, da Desmentegansa, como se diz por aqui. Mas não ficara ninguém
a resistir, a vender, como nós, cara a pele. Apenas Salai e eu, um frade, uma duquesa
sem ducado, mais ninguém, barricados cá dentro. Felizmente, tudo estava bem
predisposto. O inimigo chegaria de todas as direcções, de todas as partes apontaria
contra os muros as suas bocas de fogo aterradoras... Vivemos um tempo férvido e
agora vieram reclamá-lo.
[…]
Milão. Corte Vecchia. 7 de Fevereiro de
1496
O rapaz entrou ofegante e de rosto
pálido, naquele seu habitual ar descontraído e rebelde , cruz e delícia do seu mestre.
Leonardo observou-o com atenção, fingindo que nada se passava e continuando a
conversar com Fazio Cardano, que fora visitá-lo à sua oficina da Corte Vecchia,
ao lado da catedral. Fazio Cardano, desdentado e muito feio, tinha o seu costumeiro
fato vermelho, e estava a pôr a capa preta. Vestia-se sempre do mesmo modo: era
uma personagem singular. Em Milão ninguém sabia se era médico ou jurisconsulto,
mas certo era que se ocupava de alquimia e de ciências ocultas. Passara há
pouco os 50 anos, por vezes falava sozinho, com o seu génio familiar, dizia ele.
Sabia imensas coisas, mas era a confusão em pessoa, misturava ciência e superstição,
astrologia e anatomia, álgebra e mitologia egípcia, num saber desordenado e desprovido
de método, no qual os demónios e os teoremas de Euclides eram objecto da mesma não
muito bem definida matéria de estudo. Mas possuía livros valiosos, e Leonardo há
muito tempo que fazia a corte à perspectiva de Al-Kindi, que Fazio se gabava de
possuir, mas que nunca lhe mostrara. E, gostaria de aprender as matemáticas de
que ser Fazio se dizia especialista, mas evitava sempre as suas perguntas:
como se enquadra um triângulo, e porque é impossível enquadrar um círculo?
Aqui estão eles, os cento e dezanove
soldos. Conte-os também, por segurança. Desta vez, pelo menos, ser Fazio
apresentara-se com uma cópia nova e não cortada da Summa de Luca
Pacioli, Tê-la-ia dado por 130 soldos, uma quantia bastante consistente, mais do
dobro do que lhe custara a Bíblia em língua vulgar que deveria servir-lhe para a
Última Ceia de Santa Maria delle Grazie. O livro do franciscano de Sansepolcro
era, contudo, precisamente aquilo de que Leonardo necessitava. Ali estava tudo.
Era de facto a soma de todo o saber matemático do seu tempo: da álgebra à partida
dobrada, da arquitectura à perspectiva, da geometria euclidiana à matemática financeira...
Ali estava mesmo tudo. Após uma longa negociação, haviam descido até 119
soldos, e agora Cardano, após guardar o dinheiro num saquinho de pele, decidira-se
finalmente a ir embora. A Summa, bem encadernada, estava ali, em cima da
mesa no meio daquela grande divisão». In Francesco Fioretti, A Biblioteca Secreta
de Leonardo, 2018, Marcador Editora, Editorial Presença, 2019, ISBN
978-989-754-394-4.
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