quarta-feira, 17 de abril de 2019

As Sombras de Leonardo da Vinci. Christian Gálvez. « Ali, em Milão, esperava-o um Leonardo cada vez mais velho, mas suficientemente enérgico para voltar a embarcar noutra aventura: atravessar de novo as fronteiras da sua pátria»

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2 de Maio de 1519,
Mansão de Clos Lucé, Amboise
«Majestade, Leonardo da Vinci está a morrer. Subiu as amplas escadas que separavam a entrada do primeiro andar da quinta de Clos em segundos. Francisco I, rei de França, ignorou o comportamento próprio do protocolo real para chegar rápido junto do leito do amigo. Não hesitara um segundo ao deixar a esposa, Claudia de Valois, em boas mãos, alguns dias antes, depois de confirmado o estado de saúde do seu quarto filho e futuro delfim da casa Valois-Angoulême. Confiava plenamente no serviço do château de Saint-Germain-en-Laye. O mensageiro fora breve e directo. Majestade, Leonardo da Vinci está a morrer. Não fora preciso acrescentar mais nada. Francisco e Claudia necessitaram apenas de um olhar para compreender que aquele imprevisto tinha um único desenlace. O monarca em pessoa estaria presente no último sopro de vida do mestre florentino. Como rei, como padrinho, como aluno, como amigo. Dois dias intensos de caminho a reflectir sobre os últimos tempos. Haviam-se passado apenas três anos desde que Francisco I de Valois e de Angoulême entrara vitorioso em Milão, depois de vencer a Confederação Suíça na batalha de Marignano, que à data se proclamava senhora do milanesado. Em momento algum a sua ânsia de expansão territorial ofuscara a mente deste jovem rei amante das letras e das artes. Com o seu bom senso, reclamava apenas aquilo que por herança pertencia a sua esposa, Claudia, filha do anterior rei de França, Luís XII de Orleães.
Ali, em Milão, esperava-o um Leonardo cada vez mais velho, mas suficientemente enérgico para voltar a embarcar noutra aventura: atravessar de novo as fronteiras da sua pátria e, desta vez, aceitar o convite de um verdadeiro monarca para se tornar o primeiro pintor, o primeiro engenheiro e o primeiro arquitecto do rei. Embora, na época, Francisco tivesse outros planos. Queria, para lá de qualquer cargo cívico, um conselheiro, um amigo, um pai. Faz o que quiseres. Foram estas as palavras dirigidas a um Leonardo que, logo chegado à nova residência campestre, já imaginava o seu novo ateliê enquanto o seu assistente ainda não acabara de desembalar os instrumentos e as tintas do mestre. Como despedirmo-nos de alguém quando não estamos preparados? Como despedirmo-nos de alguém quando sentimos que muito fica por partilhar? Estas perguntas pairavam na mente do rei enquanto subia as escadas que conduziam ao primeiro andar da quinta onde o seu amigo italiano se estabelecera havia três anos.
Os seus poucos amigos, a criadagem, parte da corte real destinada a Amboise, todos ali estavam, encerrados numa construção de tijolo vermelho e lousa. Ao transpor a porta, não quis interromper o ritual que decorria aos pés do idoso que jazia na cama. Mais tarde, ficaria a saber que Leonardo, que sempre se debatera entre a fé e a razão, acabava de se confessar e recebia a extrema-unção, um indício de que o filho de Vinci sabia que a vida se lhe ia extinguindo. Lançou uma olhadela pela divisão. Tudo continuava na mesma. A secretária do amigo estava onde o vira escrever pela última vez, frente à janela. À direita, a lareira, sem sinal de ter sido utilizada recentemente.
Mal o sacerdote terminou o trabalho de Deus, afastou-se da cama para dar lugar ao rei de França. Desta vez, a pressa com que chegara ao quarto transformou-se numa sucessão de passos pesados, lentos, prudentes, respeitosos. À medida que Leonardo voltava a cabeça e, com surpresa, recebia esta inesperada visita, Francisco I louvou, com um sorriso forçado, a companhia de que seu pai gozava. Mathurina, cozinheira, governanta e a extensão viva da residência, já adiantada nos anos, aguardava de um dos lados com uma manta, pois era habitual preocupar-se com a possibilidade de o seu senhor apanhar frio. As rugas que acumulava no rosto eram, na realidade, um conjunto de volumes sobre a experiência que não seria possível encontrar nem nas melhores colecções de Lorenzo de Médici». In Christian Gálvez, As Sombras de Leonardo da Vinci, 2014, Clube do Autor, 2018, ISBN 978-989-724-367-7.

Cortesia de CdoAutor/JDACT