quarta-feira, 24 de abril de 2019

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «Moveu as pernas inchadas pelas noites inteiras de pé sem dormir e sentou-se curvada no sofá. Porquê toda de preto?»

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A Mãe
«(…) Toda de preto, como ficará toda de preto? A respiração compassada, ruidosa, atravessava o corredor e invadia a sala. Toda de preto, como será? Apoiei-me ao cadeirão já velho e deixei-me escorregar. Fiquei a olhá-la: os cabelos despenteados marcando-lhe a cor esverdeada do rosto, as mãos ossudas suspensas perto das coxas cobertas pela saia verde e branca de pequeno quadrados a acentuar-lhe mais o inchaço das pernas. Apeteceu-me agarrar-lhe um dos braços, afagar-lhe um dos braços ou apenas encostar a cabeça nos seus braços cansados. Porquê de preto?, toda de preto? A respiração pegava-se a nós: regular, constante, atravessava o corredor e aderia aos nossos nervos, ameaçadora: sempre entre o silêncio total e o grito, uma respiração sofredora, que nos obrigava a dar-lhe toda a atenção, a detestá-la mas a seguir-lhe os contornos; uns estranhos contornos, como se fosse visível, às vezes até em casa me parece ouvi-la e paro suspensa o que estou a fazer, ou o que estou a dizer. Acendi um cigarro e continuei a olhá-la: macilenta, repleta de uma dor que me fugia também, sempre pronta a correr para o quarto onde a respiração ofegante tomava conta de tudo, através dos móveis, a escapar-se até, primeiro pela frincha entreaberta da janela e depois pelas frinchas mais estreitas da persiana. Moveu as pernas inchadas pelas noites inteiras de pé sem dormir e sentou-se curvada no sofá. Porquê toda de preto? A respiração, lá dentro, acelerava-se para voltar à regularidade pastosa de sempre, talvez até um pouco mais lenta, invadindo a sala, a tropeçar pelo corredor, direita a nós, vigilante, como que a espiar-nos a mais pequena distracção. Deixei a cabeça apoiada ao espaldar mole do maple e movi as mãos nos joelhos imaginando o que diriam se ela não se vestisse toda de preto, e vi-lhe o olhar parado, baço, sobre mim. Sorri-lhe, sorri mais ao seu desânimo momentâneo do que à sua coragem de mulher conformada. Ao desânimo, sim, que pertence à mulher nova que ainda existe nela e sorri, mansamente, quase sem entreabrir os lábios, sorri-lhe como que para abrandar a morte em que se envolve dia após dia, sem qualquer remédio, já saturada mas nunca revoltada, e é isso que me retrai quando a vejo mexer-se com dificuldade à volta da cama a secar-lhe o suor com as toalhas felpudas ou pó de talco. A virá-lo, um peso morto, a dar-lhe de comer, a lavá-lo, a escutar-lhe a respiração, sem jamais se revoltar, e é isso que me retrai, que me é estranho. Como agora me retraio perante a cor que não devia pôr, que precisamente ela não devia pôr nunca. Aliso a saia, os cabelos. Parece descansar fixando o cigarro que lhe arde entre os dedos, mas não, escuta apenas, totalmente atenta à respiração talvez mais ofegante que invade a casa de uma ponta à outra, que cresce, como que incha, enorme, até ao tecto, que penetra em tudo, que nos entontece». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América, colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT