quarta-feira, 3 de abril de 2019

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Pouco dado a abluções, disparou para a cozinha mal acabei de o vestir. Quando aí voltei, ao mesmo tempo que acariciava o seu pião…»

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) O seu aspecto severo parecia retirar cor às suas faces, que nos últimos tempos se tinham transformado numa expressão de vão desafio a qualquer possibilidade de felicidade; para sempre haveria de chorar o seu marido há muito tempo enterrado e o meu irmão mais velho Mardoqueu. Para todos aqueles que tinham conhecido a jovem mãe que ela tinha sido, sempre na brincadeira, o seu ar consumido de agora era como uma prova de que a vida poupa as suas frechas mais aguçadas para as mulheres, que trazem, e choram..., os filhos que se vão. Alguma de vós viu o tio?, perguntei. Cinfa encolheu os ombros. A minha mãe passou a língua pelos seus lábios fendidos como se enfadada com a minha interrupção e abanou a cabeça. Frei Carlos e judas vieram ter comigo à cozinha. Não há sinais dele disse o frade. Sentámo-nos à mesa à espera. Subitamente vimos aparecer à porta do pátio a minha tia Ester. Trazia um vestido preto de gola subida que parecia iluminar a sua face trigueira. Os seus expressivos olhos amendoados abriram-se horrorizados: que manchas são essas?, perguntou, apontando para as minhas calças, judas esteve a chorar?! Cerrou os queixos numa expressão de crítica, fitando-me, enquanto ajeitava debaixo do lenço carmesim as madeixas dos seus cabelos tingidos de hena. Delgada e alta, de uma beleza feita de linhas e sombras cavadas, podia dominar uma sala com um único relance lançado do alto do seu elegante nariz.
Um nadinha de sangue, comecei a explicar. Os flagelados iam... Sacudiu as mãos, chupando as faces de um modo que a fazia parecer uma dançarina mourisca. Não digas nada! Nem quero ouvir! Oh Senhor! Não se podiam ao menos lavar? Faz lá como quiseres, mas que a tua mãe não veja judas nestes preparos. Nunca mais se calava! Vai, vai-te lavar, concordou frei Carlos, acenando-me para que me retirasse, já lhe tinha dito que era a primeira coisa que devia ter feito quando chegou a casa, acrescentou, dirigindo-se à tia Ester. Lancei-lhe um olhar furibundo. Ele torceu os lábios num sorriso de soslaio e levantou as sobrancelhas, como se fôssemos rivais na disputa da afeição de minha tia. Voltando-se para ela, disse: agora, quanto ao meu problemazito... Levei Judas comigo para o quarto, tirei-lhe as roupas e despi as minhas. Limpei-o com a solução de água e vinagre que a minha mãe tanto prezava, sentindo o seu corpo brando entre as minhas mãos. Era um miúdo de cinco anos, sólido, já musculoso e dono de uns sedutores olhos cinzento-azulados, que parecia destinado a tornar-se num Sansão de pele leitosa.
Pouco dado a abluções, disparou para a cozinha mal acabei de o vestir. Quando aí voltei, ao mesmo tempo que acariciava o seu pião, arrepanhava a fímbria do vestido de tia Ester, enquanto ela preparava o seu adorado café com leite de amêndoa e mel à moda da sua Pérsia natal. Lá fora, o surdo estrondear e o ranger dos carros do entulho foi repentinamente abafado pela gritaria de uma mulher. Abrindo as portadas para ouvir, avistei uma carruagem vermelha que me era familiar desembalada pela rua abaixo. Como sempre, os cavalos estavam arreados com um tecido prateado de franjas azuis. Mas o cocheiro, habitualmente um cristão-velho com a cara picada das bexigas, tinha sido substituído por um Golias loiro com um chapéu de aba larga de cor de ametista». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT