quinta-feira, 18 de abril de 2019

As Sombras de Leonardo da Vinci. Christian Gálvez. «Quem sou eu para dar conselhos a um rei, isso é trabalho para outros, que, possivelmente, fá-lo-ão melhor do que eu, disse Leonardo apontando com a única mão capaz para François…»

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2 de Maio de 1519,
Mansão de Clos Lucé, Amboise
«(…) Tendes de me desculpar, majestade. Os olhos atónitos de Francisco I não entendiam o porquê desta súplica. Vós e todos os homens. Vós e Deus em pessoa, que está no céu. Peço perdão, porque o meu trabalho não teve a qualidade que deveria. E é uma ofensa para o Criador e para toda a criação... Desta vez foram os olhos de Leonardo que, através das 1ágrimas, se tornaram cristalinos. O ar que se respirava naquela divisão tinha perfume de despedida..., e sabor de amargura. François Desmoulins, a personificação do protocolo na corte real, fazia um esforço titânico para manter a compostura. Não integrara o círculo de confiança do quase extinto mestre florentino, mas professava-lhe carinho apenas pela forma como tratava o seu aluno e, ao mesmo tempo, senhor de França. Poucos meses depois de se instalar nos domínios franceses de Francisco, já se podia ler no rosto do experiente artista italiano a expressão mais sincera de agradecimento por um mecenato sem igual na sua terra natal.
Quem sou eu para dar conselhos a um rei, isso é trabalho para outros, que, possivelmente, fá-lo-ão melhor do que eu, disse Leonardo apontando com a única mão capaz para François, que nesse momento despertava dos pensamentos. Mas deixai-me que vos diga, majestade, que tendes de procurar adquirir em vossa juventude aquilo que diminuirá os danos em vossa velhice. Vós, amante das letras e das artes, que acreditais que a velhice tem por alimento a sabedoria, fazer o possível e o impossível em vossa juventude, de tal modo que, em vossa velhice, majestade, não vos falte esse sustento. Assim farei, maître Leonardo... Um nó na garganta impedia-o de falar. Nem o uso de sessenta canhões de bronze contra vinte mil soldados pertencentes aos três contingentes dos confederados na batalha por Milão o deixara sem palavras. Kekko, meu amigo, dirigiu-se a Melzi, disponde de tudo tal como determinámos. Agora sois vós o protector.
As pausas entre palavras eram cada vez mais longas. Assim se fará, mestre, assentiu Francesco, de forma mais sentimental do que profissional. Está tudo preparado. Podeis descansar em paz. Leonardo voltou-se para a sua vetusta governanta. Antes de abrir a boca, abraçou-a com um enorme sorriso. Mathurina secava as lágrimas com um pano, o mesmo que dias depois lhe seria entregue de forma especial. Mathurina, manda os meus cumprimentos a Battista de Villanis, que cuide de Milão e do Salai. E a ti, eterna companheira, obrigado por cada palavra de ânimo que me dedicaste. Nem a tosse do mestre maculou a atmosfera de carinho. Por vezes, tal como as palavras têm duplo sentido, as peças de roupa estão cosidas com duplo forro. Ninguém compreendeu esta última frase, nem Mathurina. Também ninguém se esforçou para entender o enigma das suas palavras. Mais cedo ou mais tarde, ou alguém teria uma surpresa ou o mestre levaria o resultado da adivinha para a sepultura.
Leonardo, dei ordem para iniciar o vosso projecto. O château de Chambord começará a ser construído logo que dispusermos do necessário. Domenico está ansioso por ver o seu trabalho arquitectónico fundido com a escada de dupla hélice. França e Itália, tudo em um. Apesar da dificuldade que implicava criá-lo a partir do nada, asseguro-vos que será um êxito, mon ami. Francisco I presenteou-o com estas belas palavras. Sabia que Leonardo nunca veria a obra terminada. Nem chegaria a ver o pôr-do-Sol. Mesmo assim, tomava por certo que uma boa notícia alegraria os ouvidos receptivos do sábio amigo. No entanto, o rei não estava preparado para ouvir as palavras pronunciadas a seguir». In Christian Gálvez, As Sombras de Leonardo da Vinci, 2014, Clube do Autor, 2018, ISBN 978-989-724-367-7.

Cortesia de CdoAutor/JDACT