terça-feira, 2 de abril de 2019

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «… meu outro mesmo lado, sol da minha sombra, lua do meu negrume, rosa-do-mato ou flor de açucena…»

jdact

1754-1758
«(…) Anseio pelo que é alvo e puro, sem nenhuma memória, condenada eu a adivinhar o futuro. Naquele instante, no entanto, conseguindo iludir o conhecimento do tempo que ainda há-de vir, adiantado pelas alucinações que chegam de madrugada. Mas quando ela me viu recuei, consciente e expectante diante da imagem do meu próprio avesso, entregue já à sua fraqueza dúctil e nela me reconhecendo: meu outro mesmo lado, sol da minha sombra, lua do meu negrume, rosa-do-mato ou flor de açucena. Criança delicada e suspeitosa com quem logo me senti irmanada sem nunca nos termos chegado a tocar, apesar do encontro da ponta dos nossos dedos. Sem entender porquê retrocedi, cada passo para trás contado e medido sem pressa. Foi então que ela andou até onde eu estava, mãos alongadas na direcção das minhas, estendidas em meu amparo, voz breve a perguntar-me: como te chamas? E eu da minha antiga mudez atirei fora o susto e respondi-lhe de rouquidão na fala entumescida, a atropelar-se na garganta apertada: Lilias Fraser, e tu? Talvez ela tenha hesitado uns segundos, demorando um tudo-nada a resposta: Leonor de Almeida. E coisa alguma mais dissemos pois, sem outro motivo aparente que não fosse o destino, nos completávamos. Sabendo eu a partir desse momento tudo o resto, e por isso pude sem medo cumprir a vontade de reparar nos seus olhos de um azul de cinza ardente, onde a encontrei intacta, incontaminada do mal, embora marcada pelo fechamento de janelas, de portas e grades à sua volta, levada que será em breve por acontecimentos tão devastadores e terríveis que a irão marcar para sempre, afastá-la da vida tal como hoje a conhece e entende.

A bruxa tem os cristais guardados nos bolsos fundos da saia, deles sentindo na carne a brasa gelada e a cintilação cega, que lhe chameja o corpo. Inspira com precaução o ar, toma-lhe o gosto a salitre, fareja-o, nele detectando o enxofre, o húmus contaminado pelo revolvimento que em breve há-de vir das entranhas das terras, das águas sulfurosas e das pedras que ali já fez secar as fontes. Depois de se ter debatido noites seguidas com os próprios poderes e presságios, delirando com a febre alta que provoca convulsões e lhe repuxa as feições, a bruxa nas suas alucinações viu ruir Lisboa, escutou o urro imenso subido das entranhas da terra, os gritos aterrados das pessoas em fuga pelas ruas em chamas, ouviu os estertores das que ficaram estendidas, esmagadas debaixo do estuque e das lajes, dos mármores dos palácios, dos altares e santos das igrejas, deu conta do pavor daqueles que eram tragados pelas fendas enormes que se abriam no chão a engolir tudo, casas e carros, e também aqueles que tombavam, tropeçando nos escombros. Sentiu o estômago revoltado pelo intenso cheiro a vulcão recolhido que andava no ar espesso de fumo acre, a fundo lodoso do rio, a chuva envenenada, ao sal ácido das ondas de um mar revoltoso. Procurou em vão defender-se das queimaduras das cinzas que tombavam do alto, como se fosse neve parda, escaldante. E quando finalmente voltou a si, aterrada, reuniu os poucos haveres numa trouxa, guardou dentro dela, também, as cartas de adivinhar futuros, os cristais nos bolsos da saia imunda, embrulhou-se na manta de lã cardada, abandonou a cabana de terra batida e saiu da cidade, entregando-se ao destino que a guiou, ainda cambaleante, pelos caminhos do Campo Pequeno.
Com a boca crestada de sede, solta os emaranhados e enriçados cabelos ruivos, liberta-os do lenço de riscado preto com o qual limpa o suor do rosto afogueado pela inusitada quentura daquele princípio de tarde de 28 de Outubro de 1755, e só nesse momento repara na carruagem que acaba de sair pelo portão encimado pelo brasão dos marqueses de Távora. O carro puxado por dois cavalos brancos de crinas entrançadas vai ainda a passo lento quando se cruza com ela, parada à beira da estrada». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT