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«(…) Ainda assim, geravam-se conflitos, alguns graves, que
resultavam em mortes, quando os cruzados se apoderavam de galinhas, porcos ou
cabras, saqueavam pomares e hortas e, muitas vezes, violavam mulheres. Num fim
de tarde, Konrad, Johann e os seus dois amigos foram até ao rio, onde se
lavaram e pescaram. Konrad observava o irmão e deu-se consigo a pensar que,
pelo menos para o rapaz, já a viagem compensara. O moço perdera a palidez e os
seus ombros tinham alargado. Para não falar do fim do seu celibato. Por outro
lado, Johann estava cada vez mais ligado a Ausenda, o que não agradava ao mais
velho. Chegaram ao acampamento cheios de peixe para fritar e onde Ausenda já os
esperava com pão fresco. No fim da refeição, deleitavam-se com uvas-passas à
luz das fogueiras, quando Julião e Tomé se lhes juntaram. Os quatro alemães
estavam ansiosos por falar com estes dois, pois tinham ouvido dizer que as
tropas portuguesas, que controlavam a margem sul, haviam, na noite anterior,
atacado um pequeno barco mouro. Os comandantes Arnulf Aarschot e Christian
Gistell sabiam talvez pormenores sobre o acontecimento, mas não transmitiam
grandes informações aos soldados, o que os deixava desconfiados. Os quatro
esperavam, porém, que os dois portugueses,
com quem tinham travado amizade, os pusessem ao correr da situação. Konrad logo
lhes perguntou: o que está por detrás dessa história do barco mouro? Também ele
já se ia expressando na língua latina, aprendia muito nas suas conversas com
Julião, no fundo, mais depressa do que ele imaginara. Johann até dizia que os
dois deveriam ter herdado uma certa habilidade para aprender idiomas
estrangeiros. E ao saber que Julião trabalhara igualmente numa ferraria, Konrad
perdia serões com ele. Tomé, por seu lado, aprendera a cozinhar na taberna onde
trabalhara e, não raro, presenteava-os com sopas e guisados.
Os
mouros pediram ajuda aos do Gharb, os territórios a sul do Tejo, começou
Julião. Konrad e os outros trocaram olhares assustados. As nossas sentinelas
descobriram um pequeno barco que tentava alcançar a margem sul ao abrigo da
escuridão. Atacaram-no e os mouros saltaram logo para a água. Os nossos puxaram
o barco para terra e encontraram lá uma carta. Johann precisava, ainda assim,
de traduzir parte da informação, principalmente a Gunther que sentia
dificuldades em entender os portugueses. Julião acrescentou depois: na carta, os daqui
pediam ajuda ao rei de Évora, de seu nome Abu Muhammad Ibn Wazir. Johann
desabafou: Deus nos valha! Esse Ibn Wazir é poderoso? Para quê a preocupação?,
retorquiu Gunther, antes que Julião pudesse responder. Os portugueses não
apanharam a carta? El-rei e os seus fidalgos, replicou Tomé, pensam que os
mouros enviaram várias cópias, para terem a certeza de que pelo menos uma
atingiria o seu destino. Naturalmente, concordou Konrad. É esse o procedimento
habitual em situações semelhantes. Temos que contar que esse rei de Évora
receba o pedido de ajuda. Então, o melhor é fugirmos enquanto é tempo, opinou
Hadwig.
Calma,
retorquiu Julião. Lisbona já pertenceu ao reino mouro de uma cidade que fica a
alguns dias de marcha, para nascente, chamada Batalós, ou coisa parecida. Mas
há muitos anos que se tornou independente. Não há portanto grandes amizades
entre o alcaide e esse Ibn Wazir ou qualquer outro rei infiel. Mas os infiéis
não se quererão ajudar mutuamente?, inquiriu Hadwig. Provavelmente não, respondeu
Tomé. El-rei Afonso selou amizade com um tal de Ibn Qasi, um muladi. E o que
vem a ser isso de muladi?, quis saber Gunther. Assim se chama um cristão
convertido ao Islão. Aqui nesta terra há traidores desses?, admirou-se o ruivo.
Que haja, retorquiu Julião, encolhendo os ombros. Estes moçárabes podem ser
cristãos, mas não são como nós, mais parecem mouros, até a linguagem deles
entendem. E esse Ibn Qasi é uma espécie de chefe religioso, que mantém o Gharb
sob a sua influência. Diz-se que o rei de Évora é seu discípulo». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição
Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT