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«(…) Além disso, acrescentou Tomé, Afonso Henriques é de opinião
que este pedido de ajuda só prova que os mouros aqui de Lisbona estão
desesperados. Se calhar, até já se regateiam os preços das ratazanas lá no
mercado deles, o tal suq! Riram-se todos, menos Konrad, que continuava a
reflectir sobre o episódio da carta. Acabou por dizer: a questão é o que esse
Ibn Wazir de Évora considera ser mais importante: manter a paz com Ibn Qasi, ou
vir ajudar os seus irmãos de fé? Ninguém pode com toda a certeza responder a
essa pergunta, admitiu Julião. Mas podemos rezar. E el-rei está confiante, o
que nos sossega. A voz de Afonso Henriques é a voz de Deus, completou Tomé.
Aischa
sabia que não conseguiria adormecer. Esperou que as outras mulheres se
deitassem para se escapulir para o jardim. Agachou-se a um canto junto ao
repuxo, que nestes tempos não era posto a funcionar, e deixou correr as
lágrimas. Este dia de início de Setembro tinha sido um dos mais difíceis, desde
que o cerco começara. Não que os cruzados tivessem levado a cabo algum ataque
mais forte, mas Abdalah morrera, sem parar de balbuciar que o fim do mundo
estava próximo. Passara as últimas duas semanas em casa de Malik Ibn Danaf, a
pedido de Aischa, para que se pudesse tratar melhor dele. O que em princípio
seria tarefa das criadas e escravas, mas Aischa fizera-o muitas vezes
pessoalmente, quanto mais não fosse, para ter com que se ocupar. E gostava
sinceramente do ancião, que tantas vezes a encantara com as suas histórias,
considerava-o quase como um avô. Abdalah morrera na certeza que se
reencontraria com o seu pai e que, no
Paraíso de Alá, reviveria o esplendor do califado de al-Andalus. Mas Aischa
arrepiava-se, ao pensar que o cadáver seria devorado pelo fogo, sem lhe fazerem
o funeral. Esta era, no entanto, a melhor solução, pois o almocavar estava
inalcançável.
Mas
não se dava tal destino a todos os cadáveres. Morria tanta gente, que era
impossível queimá-los todos e havia, além disso, o medo de incêndios. Assim se
iam os cadáveres empilhando pelas ruas, lançando o seu odor pestilento. Doenças
iam-se espalhando, o número de feridos em combate aumentava de dia para dia e
houvera necessidade de improvisar um hospital na mesquita aljama, pois todos os
outros já rebentavam pelas costuras. Agora, havia quem dissesse que seria
melhor levar para lá também os cadáveres, a fim de evitar a propagação de mais
doenças. Aischa, porém, atormentava-se com a ideia de que se chegasse ao ponto
em que ninguém se prontificaria a ir lá tratar dos doentes, devido ao cheiro,
deixando-os para lá a agonizar. Também ela e a sua família se arriscavam a
morrer de fome. As refeições eram cada vez mais parcas. O pai dela possuía
burros de carga e dois cavalos, mas nenhuns
animais de criação. Sempre comprara a carne de cabrito, a mais apreciada entre
os mouros, aos aldeões das redondezas. Muitos desses pastores haviam procurado
protecção entre as muralhas, trazendo alguns animais, mas já quase não havia
nenhum. Também as galinhas desapareceriam antes de começar o Inverno e os
pescadores não podiam sair para deitar as suas redes ao rio. Ainda se poderiam
alimentar dos burros ou dos cavalos, em último caso de cães e gatos. Já havia
quem o fizesse e o estômago de Aischa revoltava-se perante tal pensamento.
Felizmente, eles ainda tinham alguns grãos de trigo, frutos secos e azeite na
cave, mas já eram racionados, o que não causava apenas problemas na
alimentação. Os candis que antigamente se encontravam por toda a casa em nichos
nas paredes, iluminando os quartos, corredores e até o jardim, limitavam-se
agora às divisões onde estivessem pessoas.
Os
dias iam ficando mais pequenos e a escuridão, a tristeza e a pestilência
apoderavam-se de Lusbuna, outrora a cidade-luz. Aischa lembrou-se ainda
daqueles que se rendiam aos cruzados, na esperança de ficarem ao seu serviço, a
troco de comida. Mas alguns majus eram tão cruéis, que lhes decepavam pés e
mãos e os devolviam à cidade. Os
coitados acabavam por morrer junto às muralhas, apedrejados pelos próprios
concidadãos, que os apelidavam de traidores. Aischa chorou até não ter mais
lágrimas. Se não fosse tão tarde, iria buscar o seu alaúde e cantaria a
melancolia que lhe atormentava a alma. Assim, fechou os olhos e começou a
compor em silêncio uma cantiga sobre a Lusbuna que desaparecia: a multidão a
regatear preços no suq, à sombra das coberturas de pano ou das esteiras de
esparto, que se estendiam entre as casas, protegendo as ruelas do sol
abrasador; o aroma da canela e dos cominhos, vindos de outras terras do Islão,
através do Mar Mediterrâneo; o peixe prateado nos cestos dos pescadores; as
lojas dos prateiros e dos ourives, das sedas e brocados, junto à bâb
al-hammã...
Viu-se
no meio da loja movimentada do pai, que lhe dizia: precisas de tecidos? Escolhe
o que quiseres, minha filha! A frescura das sedas deslizava-lhe por entre os
dedos... Um sopro de vento fez-lhe chegar um remoto odor pestilento às narinas,
um gemido de dor fez-se ouvir ao longe, trazendo a moça de volta à realidade,
ao seu canto escuro. Lusbuna nunca mais será a mesma, pensou, e eu não tornarei
a ser feliz. Mais valia morrer antes
que os cruzados tomassem a cidade e começassem a saquear, a matar os homens, a
violar as mulheres... Ouviu passos e afligiu-se. Se Abu a descobrisse aqui, a
esta hora... Mas não era o irmão mais velho que se aproximava dela, viu os
olhos esverdeados de Rashid a luzir na escuridão. Aischa, que estás aqui a
fazer ao frio? Ainda apanhas alguma febre. E qual era o mal? Ora, não chegues
ao ponto de desejar a morte. Já não aguento mais, Rashid. Não é só toda esta
miséria que me oprime. Tu, o pai e Abu correis grande perigo todos os dias. Que
faríamos sem vós? Rashid suspirou: desde que o rei de Évora recusou a sua
ajuda, pouca esperança haverá de... Como é que esse Ibn Wazír pode assistir
impávido à miséria dos seus irmãos de fé?, inquiriu furiosa. Não quer melindrar
o rei português? Esse Ibn Errik deve ter um pacto com o diabo! Não uses
linguagem dessa, Aischa! Ainda tens esperança Rashid? Onde a vais buscar?
Haverá maneira de nos salvarmos?» In Cristina
Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT