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A
Ilha
«(…) Os andores floridos, levados aos ombros pelos homens,
pareceram-me oscilar perigosamente. Olhei à roda, se bem que temesse encontrar
a enorme figura do Senhor dos Passos todo de roxo, cruz às costas e joelho na
terra, imagem terrífica que eu conhecia da igreja de Benfica em Lisboa, e que
desde o primeiro domingo em que a avó me levara à missa e eu a vira tanto me
atemorizara, me envenenara as noites em sobressalto, o sangue a escorrer-lhe pelas faces
laceradas, o sangue das feridas que a coroa de espinhos rasgara na testa onde
com crueldade se enterravam, o sangue das chagas que as chicotadas dos soldados
romanos abriram. Mas a figura que encontrei no andor oscilante mais perto de
mim, apesar da sua ostensiva, desmesurada dor, e da imensa secura do seu olhar,
era bem menos aterradora. Mesmo assim encolhi-me de
susto, a náusea dando um apertado nó na minha garganta, sem no entanto ousar
fugir, sufocada. Foi nessa altura que, mais do que as vi adivinhei as asas
brancas, filas à minha frente, anjos de asas translúcidas de verdade, quem
sabe... E num arremesso, num arroubo, numa pressa ansiosa e desmedida corri num
ápice, célere, esquecida de tudo o mais, pois os anjos esperavam-me.
Fascinada, corri abertamente, corri
maravilhada e sem peso, como quem persegue um sonho numa pressa voada, até me
encontrar no meio dos pequenos anjos com as suas asas níveas de penas leves e
macias, matizadas de rosa e ametista, prestes, soube, a levantarem voo. E logo
fiquei a imaginar como seria bom voar com eles, em vez de sentir o peso dos
passos. E fininha continuei caminhando, a sentir-me leve, cada vez mais leve e
ágil, cada vez mais ousada e ligeira, evitando fitar as costas das pessoas e da
imagem mal equilibrada no andor mais adiante. Ia de mãos postas como via fazer as
meninas à minha volta, vestidas de anjo e coroa de flores na cabeça, fatinho de
lustro a rojar o chão e as mulheres tapadas até aos olhos com os seus lenços
negros, à ritmada cadência triste e arrastada que os músicos da banda
emprestavam a tudo aquilo que tocavam. Subitamente,
porém, senti-me arrebatada no ar, como se tivesse sido apanhada por uma
tempestade, um tornado que me sugasse com o seu centro voraz e demolidor, a
transportar-me para o translúcido eixo vertiginoso, por
segundos acreditando ter sido colhida pela mão castigadora de um Deus zangado
com a minha fútil ousadia; mas logo me apercebi
estar nos braços do meu pai e ouvi a voz da mãe, rasgada por uma zanga
desmedida, palavras a tropeçarem no grito que tentava reter a custo de um
controle que não destrinçava mais.
Por breves segundos senti que ele me apertava de encontro ao seu
peito magro antes de me voltar a pôr no chão, junto à soleira da
porta de casa, ralhando baixinho, com secura: para
onde é que tu ias, menina, não me dizes? Porque fugiste? O que foi que te deu? Atrás de nós, a procissão
afastava-se em direcção ao Largo do Infante, rumo ao cais de onde
partiam os barcos, e as últimas coisas que dela me lembro ter visto, foram os
cestos cheios de hortênsias, numa mistura de pétalas cor-de-rosa derramado,
alilasado e de pétalas azul-safira, que as raparigas transportavam quase
estendidos à sua frente, num deslaçado abraço, como se ofertassem a
própria vida». In Maria Teresa Horta, Meninas,
Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.
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