quinta-feira, 25 de abril de 2019

Meninas. Maria Teresa Horta. «Fascinada, corri abertamente, corri maravilhada e sem peso, como quem persegue um sonho numa pressa voada, até me encontrar no meio dos pequenos anjos…»

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A Ilha
«(…) Os andores floridos, levados aos ombros pelos homens, pareceram-me oscilar perigosamente. Olhei à roda, se bem que temesse encontrar a enorme figura do Senhor dos Passos todo de roxo, cruz às costas e joelho na terra, imagem terrífica que eu conhecia da igreja de Benfica em Lisboa, e que desde o primeiro domingo em que a avó me levara à missa e eu a vira tanto me atemorizara, me envenenara as noites em sobressalto, o sangue a escorrer-lhe pelas faces laceradas, o sangue das feridas que a coroa de espinhos rasgara na testa onde com crueldade se enterravam, o sangue das chagas que as chicotadas dos soldados romanos abriram. Mas a figura que encontrei no andor oscilante mais perto de mim, apesar da sua ostensiva, desmesurada dor, e da imensa secura do seu olhar, era bem menos aterradora. Mesmo assim encolhi-me de susto, a náusea dando um apertado nó na minha garganta, sem no entanto ousar fugir, sufocada. Foi nessa altura que, mais do que as vi adivinhei as asas brancas, filas à minha frente, anjos de asas translúcidas de verdade, quem sabe... E num arremesso, num arroubo, numa pressa ansiosa e desmedida corri num ápice, célere, esquecida de tudo o mais, pois os anjos esperavam-me.
Fascinada, corri abertamente, corri maravilhada e sem peso, como quem persegue um sonho numa pressa voada, até me encontrar no meio dos pequenos anjos com as suas asas níveas de penas leves e macias, matizadas de rosa e ametista, prestes, soube, a levantarem voo. E logo fiquei a imaginar como seria bom voar com eles, em vez de sentir o peso dos passos. E fininha continuei caminhando, a sentir-me leve, cada vez mais leve e ágil, cada vez mais ousada e ligeira, evitando fitar as costas das pessoas e da imagem mal equilibrada no andor mais adiante. Ia de mãos postas como via fazer as meninas à minha volta, vestidas de anjo e coroa de flores na cabeça, fatinho de lustro a rojar o chão e as mulheres tapadas até aos olhos com os seus lenços negros, à ritmada cadência triste e arrastada que os músicos da banda emprestavam a tudo aquilo que tocavam. Subitamente, porém, senti-me arrebatada no ar, como se tivesse sido apanhada por uma tempestade, um tornado que me sugasse com o seu centro voraz e demolidor, a transportar-me para o translúcido eixo vertiginoso, por segundos acreditando ter sido colhida pela mão castigadora de um Deus zangado com a minha fútil ousadia; mas logo me apercebi estar nos braços do meu pai e ouvi a voz da mãe, rasgada por uma zanga desmedida, palavras a tropeçarem no grito que tentava reter a custo de um controle que não destrinçava mais.
Por breves segundos senti que ele me apertava de encontro ao seu peito magro antes de me voltar a pôr no chão, junto à soleira da porta de casa, ralhando baixinho, com secura: para onde é que tu ias, menina, não me dizes? Porque fugiste? O que foi que te deu? Atrás de nós, a procissão afastava-se em direcção ao Largo do Infante, rumo ao cais de onde partiam os barcos, e as últimas coisas que dela me lembro ter visto, foram os cestos cheios de hortênsias, numa mistura de pétalas cor-de-rosa derramado, alilasado e de pétalas azul-safira, que as raparigas transportavam quase estendidos à sua frente, num deslaçado abraço, como se ofertassem a própria vida». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT