quarta-feira, 3 de abril de 2019

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «A tua tia sempre teve jeito para ameaças, sussurrou-me frei Carlos com um sorriso maldoso. Lembras-te do dia em que te levaram à força para te baptizarem na Sé?»

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) Adivinhem quem aí vem, disse eu. Tia Ester afastou-me ligeiramente com o cotovelo e espreitou para fora. Oh, Senhor! Dona Meneses. Mais trabalho para a Mira, resmoneou. Vê se não ficas aqui especado a olhar para ela, disse-me, apertando-me a mão. Como resposta, fitei-a trocando os olhos. A carruagem suspendeu a carreira e ouviu-se a porta guinchar nos gonzos. Ouviu-se o ruído surdo dos passos de dona Meneses na Rua da Sinagoga em direcção à salinha de minha mãe. Mal entrou em casa desatou a descrever num falso tom lírico a qualidade do tecido que tinha trazido. A sua voz transformou-se num murmúrio abafado quando minha mãe fechou a porta do quarto. Tia Ester inclinou-se para nós, como quem vai confidenciar um segredo e disse: só por milagre é que Mira pode tornar aquele horrível veludo cor de pulga em alguma coisa de apresentável! E avançando para a lareira, trouxe para a mesa o nosso pão de challa, utilizando uma pega de linho. Sempre dá para pagarmos o que devemos, disse eu. Isso é. E com a seca... É o demónio!, exclamou subitamente frei Carlos numa voz de advertência. Isso não, dona Meneses pode não ser afável, mas também não se pode dizer que pertença ao Outro Lado, repliquei.
O padre contraiu os olhos e fitou-me. A língua dardejou entre os seus lábios espessos e moles: não falo dela, tolo! É o demónio que está por trás da peste e da seca! Você saiu-me um bom lunático!, disse-lhe tia Ester em hebreu, com aquele olhar de desdém capaz de gelar a água do banho, E veja se fala baixo, que não queremos espantá-la! Os sinos de São Pedro começaram a tocar as terças. Frei Carlos murmurou qualquer coisa para si próprio, como cedendo ao apelo da fé, pronunciou uma rápida acção de graças e serviu-se de um pedaço de pão quente com os seus dedos roliços. Num tom de desaprovação, prosseguiu, falando na língua sagrada, de modo que Judas não pudesse compreender: quer dizer, cara Ester, que o demónio não existe? O que quero dizer é que se volta a assustar o meu sobrinhito com os seus disparates..., e neste ponto tia Ester retirou da lareira o atiçador e apontou a sua ponta incandescente ao nariz carnudo do padre..., hei-de fazer com que encontre o seu salvador cristão mais cedo do que contava! Vá assustar outro!
A tua tia sempre teve jeito para ameaças, sussurrou-me frei Carlos com um sorriso maldoso. Lembras-te do dia em que te levaram à força para te baptizarem na Sé? Lançou-lhes pragas em sete línguas diferentes... Hebreu, persa, árabe, português... Lembramos, lembramos, interrompi, erguendo a mão num gesto de desaprovação, tentando poupar-nos à evocação. Tarde de mais. Os olhos de tia Ester tinham-se tornado distantes e opacos, mergulhados numa paisagem interior. A sua mão deslizara sob o lenço carmesim e traçava o contorno da cicatriz cruciforme que lhe tinha sido imposta naquela amaldiçoada manhã do nosso baptismo forçado. Nessa ocasião, mais que nenhuma outra, tinha resistido aos beleguins mandados pelo rei para arrastarem os judeus até à Sé. Um dos guardas, querendo dá-la como exemplo, atirou-a ao chão e prendeu-lhe as mãos e os pés ao empedrado da Rua de São Pedro. Um frade dominicano empunhando um ferro incandescente tinha então gravado uma cruz na sua fronte, enquanto gritava, para que todos pudessem ouvir: eu te abençoo com o signo de Deus, Nosso Senhor! A mim, por meu turno, as crianças cristãs cobriram-me de sangue de porco e de serrim durante o caminho da cerimónia do baptismo até minha casa. Mas não podiam adivinhar a dádiva que me fizeram: esta humilhação abrasadora mereceu-me o olhar misericordioso do Senhor e tive então a primeira das minhas visões.
Este acontecimento maravilhoso ocorreu quando Farid me avistou no pátio. Rubro de vergonha, fugi dele. Assim que atingi a porta da cozinha, porém, o pressentimento de que um par de olhos me observava obrigou-me a parar. Quando me voltei, avistei uma luz branca no céu, ao longe, por cima do castelo mourisco. À medida que se aproximava, brotavam-lhe asas e vi então que aquela luminescência era um ovo etéreo. Uma garça resplandecente cor de rubi e negra e branca tomou forma e ao voar sobre a Judiaria Pequena o vento causado pelo bater das suas asas soprava impetuoso em torno a mim. Quando me olhei, o sangue e o serrim tinham desaparecido. Meu tio disse-me que Deus me mostrara a minha pureza intocada e me revelara que o labéu cristão não passava de uma ilusão. Eu respondi: não era Deus, era só uma ave. Não, Berequias, respondeu. Deus aparece a cada um de nós sob a forma com que nós melhor O podemos apreender. Para ti, nesse momento, era uma garça. Para outro, pode surgir-lhe como uma flor ou mesmo uma brisa». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT