sábado, 6 de abril de 2019

Os Anagramas de Varsóvia. Richard Zimler. «Eu viera para o gueto com a intenção de reler toda a obra de Freud, e cheio de vontade de elaborar vários relatórios sobre doentes meus, mas ao fim de dois meses já desistira disso tudo»

jdact e wikipedia

«(…) Precipitei-me para ele, mas, quando lhe acariciei a face, o menino virou a cara. Garanti-lhe que não queria que o meu sobrinho fosse um anjo. Especialmente porque sou ateu, e não tenho intenções de ir para o céu, brinquei. Que desgraça, um velho com pouca experiência com crianças! Minha tentativa de amenizar a cena só conseguiu que ele chorasse ainda mais. No meio do meu pedido de desculpas, Stefa apareceu no batente da porta com as mãos nos quadris. Muito bonito, não tenha dúvida!, começou. Como se o menino já não tivesse… Ele não devia ser obrigado a cantar, para mim ou para quem quer que seja!, interrompi-a. Você sabe bem que ele não gosta. Na esperança de aliviar a tensão entre nós com um pouco de humor, acrescentei: além disso, acho que é melhor não ter de ouvi-lo cantar chansons d’amour num francês com sotaque iídiche, pelo menos não até estarmos um pouco mais desesperados por variedades. O tio sempre o trata mal!, gritou Stefa, vingativa. Ele tem um medo mortal de você! Ela tinha razão, sem dúvida. Tudo isso acaba aqui, disse-lhe, e surpreendi-me a acrescentar: não vou castiga-lo mais. As lágrimas encheram os olhos da minha sobrinha. Desculpe ter sido tão desagradável, Katchkele, disse-lhe, chamando-a pelo nome carinhoso que todos da família usavam com ela.
Incapaz de falar, ela apenas fez que sim com a cabeça, numa aceitação muda das minhas desculpas. Peguei Adam no colo e beijei-o na testa. Stefa saiu, fechando a porta brandamente atrás de si. Adam e eu ficamos falando baixinho, pois isso dava à nossa amizade um tom mais íntimo. Enxuguei as suas lágrimas e falei-lhe das viagens que havíamos de fazer juntos quando saíssemos do gueto. Nova York era a cidade número um dos seus sonhos, e ficou empolgadíssimo quando lhe disse que havíamos de apanhar o elevador até ao topo do Empire State Building, e lhe expliquei como olharia lá para fora, para o horizonte mais vasto do mundo. Nessa noite, deitado com o braço ao redor de Adam, vi que meu pai tinha andado perseguindo o meu espírito para me lembrar de que eu estava falhando com o seu bisneto. E comigo próprio, claro.

Eu viera para o gueto com a intenção de reler toda a obra de Freud, e cheio de vontade de elaborar vários relatórios sobre doentes meus, mas ao fim de dois meses já desistira disso tudo. Foi estranhamente fácil. Como se se tratasse apenas de me enfiar num bonde em direcção ao campo, e não ao centro da cidade. Num minuto, um homem não consegue pensar em nada que não seja deixar para a posteridade obras seminais que sejam lidas em Londres e Viena durante décadas, e no minuto seguinte está à espera do sobrinho à porta de uma escola coberta de fuligem, examinando uma costura a soltar-se num dos seus dois pares de calças e perguntando a si mesmo se ainda saberá usar agulha e linha. Agora que Adam e eu éramos amigos outra vez, ele me contava como tinha sido o seu dia enquanto voltávamos caminhando para casa. Começava num tom monótono, cauteloso, para ver se eu estava interessado, mas cada pergunta minha incentivava-o a acelerar o ritmo, de tal forma que em breve o relato lhe saía numa velocidade estonteante. Por vezes lançava-se numa elipse de pensamentos que eu não conseguia acompanhar. As palavras dele passavam por mim zumbindo como abelhas». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, ISBN 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.

Cortesia de ERecord/PortoEditora/JDACT