quinta-feira, 11 de abril de 2019

O Banqueiro Anarquista. Fernando Pessoa. «… o que é natural é o que é do instinto; e o que não sendo instinto, se parece em tudo com o instinto é o hábito. Fumar não é natural, não é uma necessidade do instinto…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Tudo isso estava dentro da sua revolta... Deduzo do que V. disse que por anarquismo V. entende (e acho que está bem como definição do anarquismo) a revolta contra todas as convenções e fórmulas sociais e o desejo e esforço para a abolição de todas... Isso mesmo. Por que escolheu V. essa fórmula extrema e não se decidiu por qualquer das outras..., das intermédias?... Eu lhe digo. Eu meditei tudo isso. É claro que nos folhetos que eu lia via todas essas teorias. Escolhi a teoria anarquista, a teoria extrema, como V. muito bem diz, pelas razões que vou dizer em duas palavras. Fitou um momento em cousa nenhuma. Depois voltou-se para mim. O mal verdadeiro, o único mal, são as convenções e as ficções sociais, que se sobrepõem às realidades naturais, tudo, desce a família ao dinheiro, desde a religião ao Estado. A gente nasce homem ou mulher, quero dizer, nasce para ser, em adulto, homem ou mulher; não nasce, em boa justiça natural, nem para ser marido, nem para ser rico ou pobre, como também não nasce para ser católico ou protestante, ou português ou inglês. É todas estas coisas em virtude das ficções sociais. Ora essas ficções sociais são más porquê? Porque são ficções, porque não são naturais. Tão mau é o dinheiro como o Estado, a constituição de família como as religiões.
Se houvesse outras, que não fossem estas, seriam igualmente más, porque também seriam ficções, porque também se sobreporiam e estorvariam as realidades naturais. Ora qualquer sistema que não seja o puro sistema anarquista, completamente, é uma ficção também. Empregar todo o nosso desejo, todo o nosso esforço, toda a nossa inteligência para implantar, ou contribuir para implantar, uma ficção social em vez de outra, é um absurdo, quando não seja mesmo um crime, porque é fazer uma perturbação social com o fim expresso de deixar tudo na mesma. Se achamos injustas as ficções sociais, porque esmagam e oprimem o que é natural no homem, para que empregar o nosso esforço em substituir-lhes outras ficções, se o podemos empregar para as destruir todas? Isto parece-me que é concludente. Mas suponhamos que o não é; suponhamos que nos objectam que isto tudo estará muito certo, mas que o sistema anarquista não é realizável na prática. Vamos lá a examinar essa parte do problema. Porque é que o sistema anarquista não seria realizável? Nós partimos, todos os avançados, do princípio, não só de que o actual sistema é injusto, mas de que há vantagem, porque há injustiça, em substituí-lo por outro mais justo. Se não pensamos assim, não somos avançados, mas burgueses. Ora de onde vem este critério de justiça? Do que é natural e verdadeiro, em oposição às ficções sociais e às mentiras da convenção. Ora o que é natural é o que é inteiramente natural, não é metade, ou um quarto, ou um oitavo de natural. Muito bem. Ora, de duas coisas, uma: ou o natural é realizável socialmente ou não é; em outras palavras, ou a sociedade pode ser natural, ou a sociedade é essencialmente ficção e não pode ser natural de maneira nenhuma. Se a sociedade pode ser natural, então pode haver a sociedade anarquista, ou livre, e deve haver, porque é ela a sociedade inteiramente natural. Se a sociedade não pode ser natural, se (por qualquer razão que não importa) tem por força que ser ficção, então do mal o menos; façamo-la, dentro desse ficção inevitável, o mais natural possível. Qual é a ficção mais natural? Nenhuma é natural em si, porque é ficção; a mais natural, neste nosso caso, será aquela que pareça mais natural, que se sinta como mais natural? É aquela que estamos habituados. (V. compreende: o que é natural é o que é do instinto; e o que não sendo instinto, se parece em tudo com o instinto é o hábito. Fumar não é natural, não é uma necessidade do instinto). Ora qual é a ficção social que constitui um hábito nosso? É o actual sistema, o sistema burguês.
Temos pois, em boa lógica, que ou achamos a sociedade natural, e seremos defensores do anarquismo; ou não a julgamos possível, e seremos defensores do regime burguês. Não há hipótese intermédia. Percebeu?... Sim, senhor; isso é concludente.
Ainda não é bem concludente... Ainda há uma outra objecção, do meu género, a liquidar... Pode concordar-se que o sistema anarquista é realizável, mas pode duvidar-se que ele seja realizável de chofre, isto é, que se possa passar da sociedade burguesa para a sociedade livre sem haver um ou mais estados ou regimes intermédios. Quem fizer essa objecção aceita como boa, e como realizável, a sociedade anarquista; mas palpita-lhe que tem que haver um estado qualquer de transição entre a sociedade burguesa e ela». In Fernando Pessoa, O Banqueiro Anarquista.

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