sábado, 13 de abril de 2019

Cartas de Amor aos Mortos. Ava Dellaira. «… mas acho que tem alguma coisa de nó que não desaparece simplesmente. Está escuro lá fora. E V. está lá. Em algum lugar. Eu te deixaria entrar aqui»

jdact e cortesia de wikipedia

«(…)
Querida Judy Garland,
Pensei em escrever para você porque O mágico de Oz ainda é o meu filme favorito. Minha mãe sempre o colocava para eu ver quando ficava doente e não ia para a escola. Ela me dava refrigerante com cubos de gelo de plástico rosa e bolacha de canela, e V. cantava Somewhere Over the Rainbow. Agora me dei conta de que todos conhecem o seu rosto. Todos conhecem a sua voz. Mas nem todos sabem de onde realmente é, a não ser dos filmes.
Penso em V. pequena, em Dezembro, na cidade onde cresceu, perto do deserto de Mojave, sapateando no palco do cinema do seu pai. Cantando músicas de Natal. V. aprendeu logo que os aplausos fazem alguém se sentir amado. Penso nas noites de Verão, quando todos iam ao teatro para aproveitar o ar-condicionado. No palco, V. fazia a plateia esquecer por um momento as mazelas da vida. Sua mãe e seu pai sorriam. A maior emoção deles era vê-la cantar. Depois, o filme passava como um borrão preto e branco, e de repente tinha sono. Seu pai a levava para fora, e era hora de voltar para casa naquele carro enorme, como um barco navegando na superfície de asfalto escuro. V. não queria que ninguém ficasse triste, então continuava cantando. Quando ouvia os seus pais brigando, cantava até dormir. E, quando não estavam brigando, cantava para que rissem. Usava a sua voz para manter a família unida. E para que V. mesma não desmoronasse.
Minha mãe costumava cantar canções de embalar para fazer May e eu dormirmos. Ela acariciava meu cabelo e ficava comigo até eu adormecer. Quando eu não conseguia dormir, ela dizia para eu me imaginar numa bolha voando sobre o mar. Eu fechava os olhos e flutuava, ouvindo as ondas. E olhava para a água lá em baixo. Quando a bolha estourava, eu ouvia a voz dela, me envolvendo numa nova bolha. Mas, agora, quando tento imaginar-me sobre o mar, a bolha estoura imediatamente. Preciso abrir os olhos rápido, antes de me estatelar. Minha mãe está triste demais para cuidar de mim. Meus pais se separaram pouco antes de May entrar no ensino médio. Quando minha irmã morreu, quase dois anos depois, minha mãe foi para a Califórnia.
Com apenas meu pai e eu em casa, há ecos por toda a parte. Fico recordando momentos em que estávamos todos juntos. Posso sentir o cheiro da carne que minha mãe preparava para o jantar. Olho pela janela e quase me vejo com May no jardim, colhendo ingredientes para as nossas poções mágicas. Em vez de ficar com a minha mãe semana sim, semana não, como May e eu fazíamos depois do divórcio, agora fico com minha tia Amy. A casa dela tem outro tipo de vazio. Não é cheia de fantasmas. É silenciosa, com prateleiras repletas de porcelanas com estampa de rosas e sabonetes de rosas para lavar a tristeza. Mas estão sendo guardados para quando forem realmente necessários, acho. Nós usamos sabonetes comuns mesmo.
Estou olhando pela janela da casa dela, fria, em baixo de uma colcha de rosas, procurando uma estrela. Eu gostaria que V. me pudesse dizer onde está agora. Sei que está morta, mas acho que tem alguma coisa de nó que não desaparece simplesmente. Está escuro lá fora. E V. está lá. Em algum lugar. Eu te deixaria entrar aqui». Beijos, Laurel

In Ava Dellaira, Cartas de Amor aos Mortos, tradução de Alyne Azuma, Editora Seguinte (o Selo Jovem da Companhia das Letras), 2014, ISBN 978-856-576-541-1.

Cortesia da ESeguinte/JDACT