domingo, 28 de abril de 2019

Pensar é Transgredir. Lya Luft. «Abro uma página da minha agenda para demarcar mais uma vez o território de minha liberdade e o dos meus deveres, que é onde ela começa a perder pé»

Cortesia de wikipedia e jdact

Laços e Punhais
«Certa vez errei uma tecla do computador, e em lugar de perdas saiu peras. Eu ia corrigir mas li de novo, achei muito mais bonito e deixei assim. Ninguém reclamou, nem os revisores. Quem sabe um dos que estudam a minha obra, preparando com a maior gravidade a sua dissertação ou tese, pare, pense, morda a ponta da caneta ou fique olhando o computador, perplexo. Para depois discorrer filosoficamente sobre aquelas frutas perdidas num texto que nada tinha a ver com elas. Dessa maneira acontecem mal-entendidos: amizades se perturbam, amores se rompem, pessoas se desencontram e magoam. Mas V. tinha dito peras! Não, eu falei perdas! Peras... Perdas... Perdeu-se nesse jogo inconsistente um pedaço de vida, um brilho de entendimento se apagou. Eu ia dizer que V. me faz muita falta, mas V. entendeu V. está em falta... comigo, com a vida, consigo mesmo. E passamos meia hora evitando nos olhar de frente, nesses momentos o universo esteve em desconserto, e nós desconcertados. Quando eu era menina, certo dia num almoço fiquei observando a família à mesa, e aquelas pessoas tão conhecidas me pareceram umas enormes salsichas com tufos de pêlos no alto, bolinhas se mexendo (chamadas olhos, ansiosos, tranquilos, amorosos ou hostis) e aquele furo no centro que se abria e fechava emitindo sons. A boca do beijo, do silêncio ou do insulto. As outras salsichas também olhavam com os seus botõezinhos de vidro brilhante, viravam-se para os lados, agitavam mãos ou abriam e fechavam os seus furinhos-boca respondendo. Palavras esvoaçavam sobre a mesa como bilhetes, sinais de fumaça ou borboletas perdidas. Um falava, outro compreendia e devolvia sinais sonoros. Mas de repente alguém não ouviu direito: os olhinhos ficaram duros, os sons da boca estridentes, ou baixos mas furiosos. Agitação na sala de jantar. Briga em família. Então nem sempre que alguém dizia flor o outro pensava flor? E podia entender pedra? Em lugar de enviar sobre a mesa palavras-borboleta, jogavam palavras-pedra? Nada era simples. O mundo se desarrumava um pouco por causa desses mal-entendidos. Até ali, para mim palavras eram objectos mágicos: agora via que podiam ser traiçoeiros. Belos de olhar, mas duros, com arestas cortantes; caramelos de vários sabores que eu deixava rolar na boca com delícia, porém a gente podia engasgar-se, até morrer. Não era só prazer a linguagem: peras, perdas, fazer falta, estar em falta ou sentir falta. Desacordo, desconserto. Ambivalentes como nós, palavras preparam armadilhas ou abrem portas de sedução. Embalam ou derrubam, enredam em doces laços, ou nos matam dolorosamente, como punhais.

Agendar a Vida
Abro uma página da minha agenda para demarcar mais uma vez o território de minha liberdade e o dos meus deveres, que é onde ela começa a perder pé. A fantasia não pede licença para se desenrolar: logo vejo uma infinidade de mesas e escrivaninhas, cada uma com a sua agenda, nela a floresta dos compromissos, mal sobrando alguma trilha estreita para andar e respirar. (Nas folhas desta minha actual quero abrir entrelinhas para contemplar a árvore em flor diante da minha janela, ou pegar nos braços uma das crianças que povoam esta casa). Vejo também agendas quase vazias onde se procura melancolicamente algo para quebrar o sem-sentido da vida: nem uma visita, uma data de aniversário, nenhum afecto nomeado, nem ao menos um pagamento nesses dias que parecem um deserto sem contornos. Nem uma miragem ao longe? Pessoalmente não vivo sem uma agenda, aquelas de bloco, ao lado do computador. Às vezes olhar a folhinha me dá alegria: um encontro bom, ou um dia inteiro só pra mim. Noutras folhas, um engarrafamento de garatujas (a minha letra, horror das professoras desde os primeiros anos de escola) com mais compromissos do que meu fundamental desejo de liberdade quereria. Agenda pode ser tormento e prisão. Mas pode ser liberdade, se a gente inventar brechas: em plena tarde da semana, caminhar na calçada; sentar ao sol na varanda do apartamento; deitar na relva do parque ou jardim, por menor que ele seja, e como criança olhar as nuvens, interpretando as suas formas: camelo, coelho, árvore ou anjo». In LyaLuft, Pensar é Transgredir, 2004, Rio de Janeiro, Editora Record, 2009, 2011, ISBN 978-850-109-376-9.

Cortesia de ERecord/JDACT