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A
Hora do Diabo
«(…)
Não são coisas muito
parecidas... Não, porque eu não sou parecido comigo mesmo. Esse vício é a minha
virtude. É por isso que sou o Diabo. E como se sente? Cansado, principalmente
cansado. Cansado de astros e de leis, e um pouco com a vontade de ficar para
fora do universo e recrear-me a sério com coisa nenhuma. Agora não há vácuo nem
sem razão; e eu lembro coisas antigas sim, muito antigas nos reinos de Adão que
eram antes de Israel. Desses estive eu para ser rei, e hoje estou no exílio do
que não tive. Nunca tive infância, nem adolescência, nem portanto idade viril a
que chegasse. Sou o negativo absoluto, a encarnação do nada. O que se deseja e
se não pode obter, o que se sonha porque não pode existir nisso está meu reino
nulo e aí está assente o trono que me não foi dado. O que poderia ter sido, o
que deveria ter havido, o que a Lei ou a Sorte não deram atirei-os às mãos
cheias para a alma do homem e ela perturbou-se de sentir a vida viva do que não
existe. Sou o esquecimento de todos os deveres, a hesitação de todas as intenções.
Os tristes e os cansados da vida, depois de levantados da ilusão erguem para
mim os olhos, porque eu também, e a meu modo, sou a Estrela Brilhante da Manhã.
E há tanto tempo que o sou!
A humanidade é pagã. Nunca qualquer religião a penetrou. Nem está
na alma do homem vulgar o poder crer na sobrevivência dessa mesma alma. O homem
é um animal que desperta, sem que saiba onde nem para quê. Quando adora os
Deuses, adora-os como feitiços. A sua religião é uma bruxaria. Assim foi, assim
é, e assim será. As religiões são somente o que extravasa dos mistérios para a
profanidade e dela não é entendido, pois, por natureza, o não pode ser. As
religiões são símbolos, e os homens tomam os símbolos, não como vidas (que são),
mas como coisas (que não podem ser). Propiciam a Júpiter como se ele existisse,
nunca como se ele vivesse. Quando se entorna sal, deita-se uma pitada, com a mão
direita, por cima do ombro esquerdo. Quando se ofende a Deus, rezam-se uns
tantos Padre-Nossos. A alma contínua pagã e Deus por exumar. Só os raros lhe
puseram a acácia (a planta imortal) no topo do túmulo, para que o levantassem
dele quando a hora viesse. Mas esses são os que, por bem buscarem, foram
eleitos para achá-lo.
O homem não difere do
animal senão em saber que o não é. É a primeira luz, que não é mais que treva
visível. É o começo, porque ver a treva é ter a luz dela. É o fim, porque é o
saber, pela vista, que se nasceu cego. Assim o animal se torna homem pela ignorância
que nele nasce. São eras sobre eras, e tempos atrás de tempos, e não há mais
que andar na circunferência de um círculo que tem a verdade no ponto que está
no centro. O princípio da ciência é sabermos que ignoramos. O Mundo, que é onde
estamos; a Carne, que é o que somos; o Diabo, que é o que desejamos. Esses três,
na Hora Alta, mataram-no o Mestre que estivemos para ser. E aquele segredo que
ele tinha, para que nos convertêssemos nele, esse segredo foi perdido. Também
eu, minha senhora, sou a Estrela Brilhante da Manhã. Era-o antes que João
falasse, porque há átomos antes de átomos, e mistérios anteriores a todos os
mistérios. Sorrio quando pensam (penso) que sou Vénus em outro esquema de símbolos.
Mas que importa? Todo este universo, com seu Deus e seu Diabo, com o que há
nele de homens e de coisas que eles veem, é um hieróglifo eternamente por
decifrar. Sou, por mister, Mestre da Magia: não sei contudo o que ela é». In Fernando
Pessoa, A Hora do Diabo, História e Alcance, Assírio e Alvim, Lisboa, 1997,
ISBN 978-972-370-435-8
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