quinta-feira, 11 de abril de 2019

O Banqueiro Anarquista. Fernando Pessoa. «Isto é, meu velho, eu é que sou o verdadeiro anarquista. Eles, os dos sindicatos e das bombas (eu também lá estive e saí de lá exactamente pelo meu verdadeiro anarquismo)»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Tínhamos acabado de jantar. Defronte de mim o meu amigo, o banqueiro, grande comerciante e açambarcador notável, fumava como quem não pensa. A conversa, que fora amortecendo, jazia morta entra nós. Procurei reanimá-la, ao acaso, servindo-me de uma ideia que me passou pela meditação. Voltei-me para ele, sorrindo. É verdade: disseram-me há dias que V. em tempos foi anarquista... Fui, não: fui e sou. Não mudei a esse respeito. Sou anarquista.
Essa é boa! V. anarquista! Em que é que V. é anarquista?... Só se V. dá à palavra qualquer sentido diferente... Do vulgar? Não; não dou. Emprego a palavra no sentido vulgar. Quer V. dizer, então, que é anarquista exactamente no mesmo sentido em que são anarquistas esses tipos das organizações operárias? Então entre V. e esses tipos da bomba e dos sindicatos não há diferença nenhuma? Diferença, diferença, há... Evidentemente que há diferença. Mas não é a que V. julga. V. duvida talvez que as minhas teorias sociais sejam iguais às deles?... Ah, já percebo! V., quanto às teorias, é anarquista; quanto à prática... Quanto à prática sou tão anarquista como quanto às teorias. E quanto à prática sou mais, sou muito mais, anarquista que esses tipos que V. citou. Toda a minha vida o mostra. O quê?! Toda a minha vida o mostra, filho. V. é que nunca deu a esta cousas uma atenção lúcida. Por isso lhe parece que estou dizendo uma asneira, ou então estou brincando consigo.
Ó homem, eu não percebo nada!... A não ser..., a não ser que V. julgue a sua vida dissolvente e anti-social e dê esse sentido ao anarquismo... Já lhe disse que não, isto é, já lhe disse que não dou à palavra anarquismo um sentido diferente do vulgar. Está bem... Continuo sem perceber... Ó homem, V. quer-me dizer que não há diferença entre as suas teorias verdadeiramente anarquistas e a prática da sua vida, a prática da sua vida como ela é agora? V. quer que eu acredite que V. tem uma vida exactamente igual à dos tipos que vulgarmente são anarquistas? Não; não é isso. O que eu quero dizer é que entre as minhas teorias e a prática da minha vida não há divergência nenhuma, mas uma conformidade absoluta. Lá que não tenho uma vida como a dos tipo dos sindicatos e das bombas, isso é verdade. Mas é a vida deles que está fora do anarquismo, fora dos ideais deles. A minha não. Em mim, sim, em mim, banqueiro, grande comerciante, açambarcador se V. quiser, em mim a teoria e a prática do anarquismo estão conjuntas e ambas certas. V. comparou-me a esses parvos dos sindicatos e das bombas para indicar que sou diferente deles. Sou, mas a diferença é esta: eles (sim, eles e não eu) são anarquistas só na teoria; eu sou-o na teoria e na prática. Eles são anarquistas e estúpidos, eu anarquista e inteligente.
Isto é, meu velho, eu é que sou o verdadeiro anarquista. Eles, os dos sindicatos e das bombas (eu também lá estive e saí de lá exactamente pelo meu verdadeiro anarquismo), eles são o lixo do anarquismo, os fêmeas da grande doutrina libertária. Essa nem ao diabo a ouviram! Isso é espantoso! Mas como concilia V. a sua vida, quero dizer a sua vida bancária e comercial, coma as teorias anarquistas? Como o concilia V., se diz que por teoria anarquista entende exactamente o que os anarquistas vulgares entendem? E V., ainda por cima, me diz que é diferente deles por ser mais anarquista do que eles, não é verdade? Exactamente. Não percebo nada. Mas V. tem empenho em perceber? Todo o empenho». In Fernando Pessoa, O Banqueiro Anarquista.

Cortesia de Wikipedia/CFH/UFSC/Magno/JDACT