segunda-feira, 15 de abril de 2019

Camões e a Infanta D. Maria. Ceuta. José Maria Rodrigues. «De ouvir meu dano, as rosas matutinas condoídas se cerram, se emmurchecem; com meu suspiro ardente as cores finas perdem o cravo, o lirio, e não florecem»

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De volta de Ceuta
«(…) Um dos artigos fundamentais do programma de vida nova, traçado em Ceuta por Camões, era, segundo vimos, a sua reconciliação com aquella

Cuja lembrança e cujo claro gesto

lhe reappareciam agora na ulcerada alma, como que a encobrir o incommensuravel vácuo que nella se fizera. Foram, porém, baldados todos os esforços empregados por parte do poeta para realizar este intento. Não lhe valeram satisfações, rogos nem queixumes, expressos com toda a eloquência em admiráveis versos (églogas 3.ª, 4.ª e 5.ª).

Caminha o dia todo o caminhante
E, emfim, lhe chega a noite em que descansa;
Trabalha na tormenta o navegante,
Traz-lhe a clara manhã feliz bonança;
Recobra o fruto fértil e abundante
Da terra o lavrador, se nella cansa:
Mas eu de meu cuidado e mal tão forte
Tormento espero só, só crua morte.

De ouvir meu dano, as rosas matutinas
Condoídas se cerram, se emmurchecem;
Com meu suspiro ardente as cores finas
Perdem o cravo, o lirio, e não florecem.
Co’a roxa aurora as pallidas boninas,
Em vez de se alegrarem, se entristecem.
Deixam seu canto Progne e Philomena (i),
Que mais lhes doe, que a sua, a minha pena.

Responde o monte concavo a meus ais,
E tu, como aspid, cerras-lhe o ouvido;
Os indómitos, feros animais,
Sem humano sentir, mostram sentido;
Mas em ti minhas dores desiguais
Nunca movem o peito endurecido.
Por muito que te chame, não respondes,
E, quanto mais te busco, mais te escondes.

Naquella parte donde costumavas
Apascentar meus olhos e teu gado,
Alli donde mil vezes me mostravas
Que era o pastor de ti mais desejado.

Nota: Escrevendo Philomena por Philomela (o rouxinol), o poeta tinha presentes, além d’outros, estes versos da egloga do brando e doce Garcilasso Al visorey de Nápoles:

Con la pesada voz retumba y suena
la blanda Philomena.

Vezes mil te busquei, por ver se davas
Algum breve descanso a meu cuidado,
Busco-te em vão no valle, em vão no monte,
Qual o ferido cervo busca a fonte.

Este lugar, de ti desamparado,
Em cujas sombras frias já folgaste.
Agora triste, escuro, é já tornado,
Que todo o bem comtigo nos levaste.
Eras tu nosso sol mais desejado;
Não temos luz, despois que nos deixaste.
Torna, meu claro sol, torna meu bem;
Qual é o Josué que te detém?

Despois que deste valle te apartaste.
Não pára já algum gado, com secura;
Secou-se o campo, desque lhe negaste
Dos teus formosos olhos a luz pura;
Secou-se a fonte donde já te olhaste,
Quando menos, que agora, áspera e dura.
Nega sem ti a terra, ouvindo gritos,
Ás cabras pasto, e leite aos cabritos.

Sem ti, doce cruel minha inimiga,
A clara luz escura me parece;
Este ribeiro, quando a dor me obriga.
Com meu chorar por ti contino crece;
Não ha fera, a que a fome não persiga;
Algum prado sem ti já não florece.
Cegos estão meus olhos, nada vem.
Porque não podem ver seu claro bem.

                                                             
Torna, pois, já, pastora, ao nosso prado.
Se restituir-lhe queres a alegria;
Alegrarás o valle, o campo, o gado,
E aquelle espelho teu da fonte fria.
Torna, torna, meu sol tão desejado;
Farás a noite escura claro dia;
E alegra já esta vida magoada,
Em que só tua ausência é parca irada.

[…]

In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT