quinta-feira, 11 de abril de 2019

O Banqueiro Anarquista. Fernando Pessoa. «Uma pergunta, por curiosidade... Por que é que V. se tornou propriamente anarquista? V. podia ter-se tornado socialista…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Ele tirou da boca o charuto, que se apagara; reacendeu-o lentamente; tirou o fósforo que se extinguia; depô-lo ao de leve no cinzeiro; depois, erguendo a cabeça, um momento baixa, disse: oiça. Eu nasci do povo e na classe operária da cidade. De bom não herdei, como pode imaginar, nem a condição, nem as circunstâncias. Apenas me aconteceu ter uma inteligência naturalmente lúcida e uma vontade um tanto ou quanto forte. Mas esses eram doms naturais, que o meu baixo nascimento me não podia tirar. Fui operário, trabalhei, vivi uma vida apertada; fui, em resumo, o que a maioria da gente é naquele meio. Não digo que absolutamente passasse fome, mas andei lá perto. De resto, podia tê-la passado, que isso não alterava nada do que se seguiu, ou do que lhe vou expor, nem do que foi a minha vida, nem do que ela é agora.
Fui um operário vulgar, em suma; como todos, trabalhava porque tinha que trabalhar, e trabalhava o menos possível. O que eu era, era inteligente. Sempre que podia, lia coisas, discutia coisas, e, como não era tolo, nasceu-me uma grande insatisfação e uma grande revolta contra o meu destino e contra as condições sociais que o faziam assim. Já lhe disse que, em boa verdade, o meu destino podia ter sido pior do que era; mas naquela altura parecia-me a mim que eu era um entre a quem a Sorte tinha feito todas as injustiças juntas, e que se tinha servido das convenções sociais para mas fazer. Isto era aí pelos meus vinte anos, vinte e um o máximo, que foi quando me tornei anarquista. Parou um momento. Voltou-se um pouco mais para mim. Continuou, inclinando-se mais um pouco. Fui sempre mais ou menos lúcido. Senti-me revoltado. Quis perceber a minha revolta. Tornei-me anarquista consciente e convicto, o anarquista consciente e convicto que hoje sou.
E a teoria, que V. tem hoje, é a mesma que tinha nessa altura? A mesma. A teoria anarquista, a verdadeira teoria, é só uma. Tenho a que sempre tive, desde que me tornei anarquista. V. já vai ver... Ia eu dizendo que, como era lúcido por natureza, me tornei anarquista consciente. Ora o que é um anarquista? É um revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente, no fundo é só isto. E de aí resulta, como é de ver, a revolta contra as convenções sociais que tornam essa desigualdade possível. O que lhe estou indicando agora é o caminho psicológico, isto é, como é que a gente se torna anarquista; já vamos à parte teórica do assunto. Por agora, compreenda V. bem qual seria a revolta de um tipo inteligente nas minhas circunstâncias. O que é que ele vê pelo mundo? Um nasce filho de um milionário, protegido desde o berço contra aqueles infortúnios, e não são poucos, que o dinheiro pode evitar ou atenuar; outro nasce miserável, a ser, quando criança, uma boca a mais numa família onde as bocas são de sobra para o comer que pode haver. Um nasce conde ou marquês, e tem por isso a consideração de toda a gente, faça ele o que fizer; outro nasce assim como eu, e tem que andar direitinho como um prumo para ser ao menos tratado como gente. Uns nascem em tais condições que podem estudar, viajar, instruir-se, tornar -se (pode-se dizer) mais inteligentes que outros que naturalmente o são mais. E assim por aí adiante, e em tudo...
As injustiças da Natureza, vá: não as podemos evitar. Agora as da sociedade e das suas convenções, essas, por que não evitá-las? Aceito, não tenho mesmo outro remédio, que um homem seja superior a mim por o que a Natureza lhe deu, o talento, a força, a energia; não aceito que ele seja meu superior por qualidades postiças, com que não saiu do ventre da mãe, mas que lhe aconteceram por bambúrrio logo que ele apareceu cá fora, a riqueza, a posição social, a vida facilitada, etc. Foi da revolta que lhe estou figurando por estas considerações que nasceu o meu anarquismo de então, o anarquismo que, já lhe disse, mantenho hoje sem alteração nenhuma. Parou outra vez um momento, como a pensar como prosseguiria. Fumou e soprou o fumo lentamente, para o lado oposto ao meu. Voltou-se, e ia a prosseguir. Eu, porém, interrompi-o. Uma pergunta, por curiosidade... Por que é que V. se tornou propriamente anarquista? V. podia ter-se tornado socialista, ou qualquer outra cousa avançada que não fosse tão longe». In Fernando Pessoa, O Banqueiro Anarquista.

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