segunda-feira, 29 de abril de 2019

O Erotismo. Georges Bataille. «A representação da violência, que devemos atribuir particularmente aos homens primitivos, é entendida necessariamente em oposição ao movimento do trabalho…»

jdact e wikipedia

O interdito ligado à morte
Os dados pré-históricos do interdito ligado à morte
«(…) A prática da sepultura é o testemunho de um interdito semelhante ao nosso que concerne aos mortos, e à morte. Pelo menos, de uma forma vaga, a origem desse interdito é logicamente anterior a essa prática. Podemos mesmo admitir, num certo sentido e de forma superficial, que ele nasceu ao mesmo tempo que o trabalho, de maneira que nenhuma prova pôde subsistir e seu surgimento escapou mesmo aos que o viveram. Trata-se essencialmente de uma diferença feita entre o cadáver do homem e os outros objectos, como as pedras. Hoje essa diferença caracteriza ainda um ser humano em relação ao animal: o que chamamos de morte é em primeiro lugar a consciência que temos dela. Percebemos a passagem da vida à morte, isto é, ao objecto angustiante que é para o homem o cadáver de um outro homem. Para cada um daqueles que ele fascina, o cadáver é uma imagem de seu destino. Ele é testemunho de uma violência que não só destrói um homem, mas que destruirá todos os homens. O interdito que se apodera dos outros diante do cadáver é uma forma de rejeitara violência, de se separar da violência. A representação da violência, que devemos atribuir particularmente aos homens primitivos, é entendida necessariamente em oposição ao movimento do trabalho que é regulado por uma operação racional. É, há muito tempo, reconhecido o erro de Lévy-Bruhl, que recusava ao primitivo um modo de pensar racional, atribuindo-lhe apenas os deslizamentos e as representações indiferenciadas da participação: o trabalho não é evidentemente menos antigo que o homem, e se bem que o animal não seja sempre estranho ao trabalho, o trabalho humano, distinto do animal, nunca é estranho à razão. O homem acha que existe uma identidade fundamental entre ele e o objecto trabalhado e uma diferença, resultante do trabalho, entre a sua matéria e o instrumento fabricado. Da mesma forma, ele tem a consciência da utilidade do instrumento, da série de causas e efeitos que o envolve. As leis que presidem às operações conscientes de onde provêm ou às quais serviram os instrumentos são desde o início as leis da razão. Estas leis dirigem as mudanças que o trabalho concebe e realiza. Sem dúvida, um primitivo não poderia tê-las articulado numa linguagem que lhe daria a consciência dos objectos designados, nem a da designação, nem a da própria linguagem.
A maior parte do tempo o operário moderno não estaria também apto a formulá-las: entretanto, ele as observa fielmente. O primitivo pôde, em certos casos, pensar como Lévy-Bruhl o representou, de uma maneira insensata, pensar que uma coisa é, mas ao mesmo tempo não é, ou que ela pode num mesmo tempo ser o que ela é e outra coisa. A razão não dominava todo o seu pensamento, mas o dominava na operação do trabalho, de modo que um primitivo pôde conceber, sem formular, um mundo do trabalho ou da razão, a que o mundo da violência se opunha. Certamente a morte difere, como se fosse uma desordem, da organização do trabalho: o primitivo podia sentir que a ordenação do trabalho lhe pertencia, enquanto a desordem da morte o ultrapassava, fazendo de seus esforços um contra-senso. O movimento do trabalho, a operação da razão, lhe servia, enquanto a desordem, o movimento da violência, arruinava o ser mesmo que está no fim das obras úteis. O homem, identificando-se com a ordenação que operava o trabalho, separou-se nessas condições da violência, que agia em sentido contrário». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972-608-018-3.

Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT