quarta-feira, 24 de abril de 2019

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «E a outra analisa-lhe o corpo, analisa-lhe o medo: o medo que conhece há anos. O mesmo vício. Oferecia o corpo com a mesma suavidade»

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Movimentos
(…) Antes de entrar ela hesita ainda um último instante. Através dos vidros da porta de batentes distingue as mesas dispostas ao longo das paredes e vê-o a ele sentado à sua espera. A garrafa de vinho, os copos e as suas mãos compridas, finas, que devem ter já a palidez que Outubro empresta à pele. No fato leve e solto o corpo dela tem o movimento nu do desejo. Empurra a porta com os dedos e aproxima-se docemente, sem ruído, com um […] à pele.
À medida que vomita a náusea vai passando. Está como que liberta; sente o corpo cansado das mãos dele, o corpo dorido das mãos dele; mas está como que liberta, repito, está como que vingada.
Toda vestida de preto; olho-a sentada na borda da cadeira envernizada: tem um ar apático, neutro. Nos seus olhos secos há um brilho áspero, incerto; há um tom apagado e indefinido. Olho-a toda vestida de preto sentada na igreja onde os sons se perdem devorados pela obscuridade, pelo odor macerado das velas e dos corpos. Na pequena capela tudo parece irreal, imóvel: o tempo de um cadáver que espera. Sentada ela aguarda que a vida empurre as pessoas e as coisas. Os seus gestos são demorados e inúteis: são os gestos de convenção que os outros exigem.
Deitada na cama grita ainda (nada mais a obriga a viver). A outra olha-lhe os peitos e as ancas e tenta reter lhe as mãos desordenadas que procuram o vácuo à sua roda. Podiam-na ter abandonado lá fora, ao pé da grande árvore, que era o mesmo. Deitada grita ainda mais (nada a pode obrigar a viver). E a outra analisa-lhe o corpo, analisa-lhe o medo: o medo que conhece há anos. O mesmo vício.
Oferecia o corpo com a mesma suavidade. As pernas esguias ou o ventre, tal como os seios e os ombros, tinham um contorno adolescente onde ela domava o vício, onde ela soltava, às vezes, o vício, com um torpor ou com uma liberdade total, uma necessidade extrema. E o gemido enchia a casa depois de sair mordido da sua boca.
Recusa sistematicamente as pessoas e os gestos de oferta. Há muito que se esqueceu dos outros..., quando a magoam: lembra-se. Mas lembrar-se-á ela de alguma coisa? Quando sorri, é como se um véu lhe cobrisse o rosto.
Já nada há a fazer. Passeia fechada no seu jardim... As coisas acontecem sem finalidade: sente-as de um modo irremediável, precisa afundar-se mais e mais em si própria, esquecendo-se mais e mais de si própria e dos outros...» In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América, colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT