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Movimentos
(…) Antes de entrar ela hesita ainda
um último instante. Através dos vidros da porta de batentes distingue as mesas
dispostas ao longo das paredes e vê-o a ele sentado à sua espera. A garrafa de
vinho, os copos e as suas mãos compridas, finas, que devem ter já a palidez que
Outubro empresta à pele. No fato leve e solto o corpo dela tem o movimento nu
do desejo. Empurra a porta com os dedos e aproxima-se docemente, sem ruído, com
um […] à pele.
À medida que vomita a náusea vai
passando. Está como que liberta; sente o corpo cansado das mãos dele, o corpo
dorido das mãos dele; mas está como que liberta, repito, está como que vingada.
Toda vestida de preto; olho-a sentada
na borda da cadeira envernizada: tem um ar apático, neutro. Nos seus olhos
secos há um brilho áspero, incerto; há um tom apagado e indefinido. Olho-a toda
vestida de preto sentada na igreja onde os sons se perdem devorados pela
obscuridade, pelo odor macerado das velas e dos corpos. Na pequena capela tudo
parece irreal, imóvel: o tempo de um cadáver que espera. Sentada ela aguarda
que a vida empurre as pessoas e as coisas. Os seus gestos são demorados e
inúteis: são os gestos de convenção que os outros exigem.
Deitada na cama grita ainda (nada
mais a obriga a viver). A outra olha-lhe os peitos e as ancas e tenta reter lhe
as mãos desordenadas que procuram o vácuo à sua roda. Podiam-na ter abandonado
lá fora, ao pé da grande árvore, que era o mesmo. Deitada grita ainda mais
(nada a pode obrigar a viver). E a outra analisa-lhe o corpo, analisa-lhe o
medo: o medo que conhece há anos. O mesmo vício.
Oferecia o corpo com a mesma
suavidade. As pernas esguias ou o ventre, tal como os seios e os ombros, tinham
um contorno adolescente onde ela domava o vício, onde ela soltava, às vezes, o
vício, com um torpor ou com uma liberdade total, uma necessidade extrema. E o
gemido enchia a casa depois de sair mordido da sua boca.
Recusa sistematicamente as pessoas e
os gestos de oferta. Há muito que se esqueceu dos outros..., quando a magoam:
lembra-se. Mas lembrar-se-á ela de alguma coisa? Quando sorri, é como se um véu
lhe cobrisse o rosto.
Já nada há a fazer. Passeia fechada no seu jardim... As coisas
acontecem sem finalidade: sente-as de um modo irremediável,
precisa afundar-se mais e mais em si própria, esquecendo-se mais e mais de si
própria e dos outros...» In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo,
Publicações Europa América, colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.
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