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Um
Roubo
«(…)
Foi numa noite medonha, cheia de água e gelada, que o Faustino assaltou a
Senhora da Saúde. Há tempos já que a ideia desse roubo o obcecava, mas a mulher
e o demónio duma hesitação imbecil tinham-no afastado disso. Ainda bem que o
destino acabara por dispor as coisas de maneira a que ele pudesse finalmente
realizar o sonho. Punha-se a deitar contas à vida, às casas da povoação onde
lhe fosse possível arranjar meia dúzia de vinténs para matar a fome naquela
grande invernia, e nada, a não ser a Senhora da Saúde. Mas é que nada! Abaças
era uma terra pobre. Dinheiro, do contado, só o Albertino. Infelizmente, ao
Albertino, tudo menos mexer-lhe num gravelho. Forte e valente como um toiro,
ainda por cima dormia de caçadeira encostada ao travesseiro. É claro que havia
o recurso de alargar os olhos pelas aldeias vizinhas. Somente: além de o
temporal tolher os passos ao mais honrado, como o ano ia de fome, todos viviam
de olho aberto e de porta trancada. De resto, não se sentia já com forças para
repetir a façanha de Freixoedo. Cinco costelas partidas são muitas costelas.
Sem contar, e aqui é que a porca torcia o rabo, com o aviso solene do juiz: dou-lhe
apenas quatro meses, atendendo a que já foi bem convidado e que é esta a
primeira vez que aqui me aparece. Mas não volte! De contrário, perca o amor à
liberdade. Ora, uma coisa é passar uns dias na cadeia de Alijó e outra ver-se
um homem metido numa penitenciária a vida inteira. Apertada por tal arrocho, a
imaginação do Faustino sucumbia. Até que, ressuscitada por aquele buraco no
estômago que nenhum aguaceiro enchia, começou de novo a namorar a Senhora da
Saúde, rica e desamparada na serra.
Nem
juiz, nem testemunhas, nem o delegado a berrar... Nada. Decididamente, o grande
tiro era ali! Naquela noite, depois dum caldo que nem a cães, e de todas as
demais hipóteses arredadas, a miragem voltou, mas já sem a indecisão das
tentações anteriores. Não havia que ver. O sítio não podia ser melhor; à porta,
bastava-lhe um empurrão; o resto, quê? Acender uma vela das do altar, forçar a
fechadura da caixa das esmolas, encher o bolso, e ala morena. A mulher, sem
migalha de pão na arca e sem pinga de azeite na almotolia, sabia bem que o
remédio habitual daquelas penúrias era ir buscá-lo onde o houvesse. Mas quando
o homem, a meia voz, começou a repisar a ideia, desaprovou mais uma vez o
projecto sacrílego. A outro lado qualquer, estava de acordo. À Senhora da
Saúde, não.
O
Faustino nem a ouviu, ocupado como estava no labor de semear a boa semente na
terra podre dos últimos escrúpulos. Debruçado sobre as pernas, com os dedos dos
pés a espreitar das meias rotas, continuou a aquecer-se aos tições apagados, a
chupar a pirisca do cigarro e a enumerar uma por uma as mil vantagens do
negócio. Coisa realmente fácil, sem nenhum perigo, e que trazia a solução do
aperto em que estavam. Por ser capela?! Valha-nos Deus! O essencial é que na
caixa houvesse algum... Ao menos cem mil reisinhos! Há?! Pois não teria sequer
cem mil réis?! Interpelava a companheira, que não colaborava já de nenhum modo
naquela luta. Embrulhada no xaile puído, aninhara-se quase em cima do borralho
e fechara os olhos. O Faustino teve de responder às suas próprias perguntas.
Cem
mil reis, e a contar muito por baixo. Até era ofender a Santa, supô-la com
menos capital na arca. À medida que ia pondo na balança as justificações do seu
desejo, o Faustino via oscilar o fiel da decisão e pender para o lado que lhe
convinha o prato reluzente da fortuna. Não havia que ver. As coisas eram o que
eram. A evidência metia-se pelos olhos dentro. Por volta da meia noite as
derradeiras amarras da consciência acabaram de ceder. Raios partissem as horas
que gastara a pensar na morte da bezerra! Há certas alturas em que a gente, em
vez de miolos, parece que tem aranhas no toutiço! Ergueu-se. Do Faustino
titubeante, quase a deixar fugir a sorte que tão generosamente lhe sorria, já
não restavam sinais. Agora estava de pé um homem magro, baixo, de barba
restolhuda e olhos de azougue, vivo, flexível, decidido como uma doninha. A
mulher nem dormia nem velava. Continuava engrunhada no seu canto, distante,
como se o frio a tivesse entorpecido ou uma grande dor silenciosa e funda a
roesse por dentro». In Miguel Torga, Os Contos da Montanha, Edições Dom Quixote, Coimbra, 1999,
ISBN 978-972-201-651-3.
Cortesia
DQuixote/JDACT