2 de Maio de 1519,
Mansão de Clos Lucé, Amboise
«(…) A última coisa que jantou foi
uma sopa quente, disse entredentes, afastando o olhar do rei, que, apesar da
confiança que tinha com o seu senhor, lhe instilava um profundo respeito. Francesco
Melzi encontrava-se junto à cabeceira. O fiel secretário pessoal de Leonardo
não estava há mais de doze anos com ele, mas o seu carinho, a sua preocupação e
o trato familiar haviam-no confirmado como o seu braço direito. Está tudo a postos,
majestade, disse ao rei. O monarca percebeu imediatamente. Leonardo tivera tempo
suficiente e prudência para preparar a sua partida e tinha como assente que o seu
testamento estava definido e que mais nada o prendia ao mundo dos vivos. Francisco
I de França dirigiu um olhar rápido ao seu conselheiro real, François Desmoulins.
Uma das capacidades do jovem regente era a comunicação não verbal, algo muito útil
em situações como aquela. Numa fracção de segundo, Desmoulins instou a comitiva
que apinhava a pequena sala que fazia as vezes de quarto principal que concedesse
a sua majestade alguns minutos de intimidade. Com um pequeno gesto, indicou que
os mais próximos de Leonardo poderiam, se fosse do seu agrado, ficar ali. Nada tinha
a esconder daqueles que partilhavam igual afecto pela mesma pessoa.
Mon père..., foram as únicas
palavras que o governante de França ousou pronunciar. Francesco, disse Leonardo
com uma confiança que ultrapassava qualquer solenidade real e um finíssimo fio de
voz, o qual mantivera o costume de italianizar os nomes daqueles com quem
lidava. Grazie por realizar semelhante... Não há nada para agradecer, interrompeu Francisco, evitando que o idoso desperdiçasse
esforços. Por onde anda Caprotti? Pensava que, num momento como este, haveria de
querer estar presente. Sabia que a pergunta era a menos adequada, mas precisava
de começar de qualquer maneira, e não sabia quanto tempo lhe restava. O jovem Francesco
apressou-se a responder. Sabia que Salai tinha consciência do delicado estado de
saúde do mestre. Ele próprio procurara transmitir-lho por meio de carta, da qual
obteve como resposta um seco mais cedo ou mais tarde, tinha de acontecer. Uma
informação que administrou com cuidado e dissimulação, já que a missiva nunca chegou
às mãos de Leonardo. Vontade não faltou a Francesco, visto que, apesar do abandono,
Leonardo se lembrara de Gian Giacomo Caprotti, alás, Salai, com grande
generosidade, no seu testamento. Mas era a vontade do maior génio que havia conhecido,
e decidiu mantê-lo na ignorância para não provocar males maiores. Não lhe custou
muito mentir a um rei. Giacomo encontra-se em Florença a tratar de questões financeiras,
afirmou com uma credibilidade esmagadora, e, na impossibilidade de chegar a tempo
às vossas terras de França, preferi não o alertar acerca deste funesto acontecimento.
Maldito fornicador, este diabo!, gritou Leonardo, fazendo acompanhar estas palavras
de uma ruidosa tosse. De certeza que anda a passear a verga e, ao mesmo tempo, a
limpar os bolsos, não sabe fazer outra coisa!
Francesco teve de desviar o olhar
para esconder o riso. Procurou cumplicidade em Mathurina, mas o que encontrou foi
uma silenciosa reprimenda que o fez ruborizar. Francisco acompanhava toda a cena
com atenção e, apesar da tristeza que se respirava no ambiente, esboçou uma careta
que poderia perfeitamente ter resultado num acesso de riso. Mas, acto contínuo,
Leonardo voltou a pousar os olhos no rei de França, como fazia há mais de vinte
anos. Leonardo, mon ami, calma..., sussurrou Francisco enquanto compunha
os cabelos de um idoso agora alterado que se revolvia ligeiramente por baixo dos
lençóis. Há algo que possa fazer por ti, maître? Não, majestade. Já não há
nada a fazer. Queriam matar Leonardo da Vinci. De uma maneira ou de outra, conseguiram.
Pequenas lágrimas apareceram nos espelhos da alma de Mathurina. Francesco Melzi
abanou a cabeça. Quanto mais tempo passava, mais custava a Leonardo da Vinci articular
alguma palavra, e demorava-se a dosear a respiração que expelia de uma maneira inteligente
e racional, como se se tratasse de um novo invento para formular as palavras necessárias
no tempo certo». In Christian Gálvez, As Sombras de Leonardo da Vinci, 2014, Clube do
Autor, 2018, ISBN 978-989-724-367-7.
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