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«(…) Por Deus, lançou Afonso. Não estamos preparados para um
cerco. As provisões chegam, no máximo, para quatro dias. O povo está em pânico,
bradou Lourenço, que só agora surgia. A presença de Belmira no aposento de
Afonso perturbara-o e tinha ido procurar satisfação num bordel. Vi-me aflito
para aqui chegar. Amanhecia. Afonso conseguia distinguir o vulto das pessoas
pelas ruas, onde antes só via os movimentos desordenados dos fachos. E, de
repente, os homens por sobre o adarve agitaram-se mais. Afonso apercebeu-se de
que enviavam um mensageiro ao cimo da torre. Mas, ainda antes de este ter lá
chegado, ouviam-se os gritos: el-rei! Hostes d’el-rei Afonso VII! Enquanto os
nobres se olhavam estupefactos, Afonso agarrou o mensageiro pelas vestes e
berrou-lhe: mas porque gritam esses doudos o nome de meu primo? Avistaram-se os
estandartes d’el-rei, senhor. A fúria fervia dentro dele. Mas o que havia
passado pela cabeça de Afonso Raimundes? El-rei há-de dizer-nos o que pretende
com esta empresa, sentenciou Egas Moniz. Desçamos e esperemos pelo seu enviado!
Ao fim da manhã, abriram-se as portas da cidade e as do
castelo, a fim de deixar entrar o mensageiro de Afonso VII. Perante o infante e
os seus nobres, o homem declarou: el-rei exige que Afonso Henriques lhe jure a
sua fidelidade de vassalo! Afonso explodia de fúria e indignação. E foi Egas
Moniz quem se dirigiu ao mensageiro: pois sim. Diz a el-rei que lhe mandaremos
recado! Assim que o homem desapareceu, Gonçalo Mendes confessou: por esta é que
eu não esperava. Nem eu, concordou o Moço.
El-rei de Leão e Castela dá-se ao
trabalho de vir cercar Guimarães para que o filho da rainha lhe preste
vassalagem? Não lembra ao diabo. Não blasfemes, meu filho! A Egas Moniz não
agradava ouvir o nome do demónio ser mencionado na sua presença. Pois eu estou
com meu irmão, atalhou Lourenço. Porquê tanta hostilidade? Não é com a nossa rainha que el-rei tem de se haver?
Aqui está a prova, bradou o Grosso de que já ninguém conta com dona Teresa,
desertada pelos barões da nossa terra. Egas Moniz lançou um olhar preocupado a
Afonso. Apresentava um semblante tão carregado, que, quem não o conhecesse,
nunca lhe daria apenas dezanove anos. O senhor de Ribadouro acabou por dizer,
encolhendo os ombros: talvez el-rei esteja a ser injusto connosco... Mas não
temos escolha. Se quisermos salvar a cidade e viver em paz com ele, o nosso
infante tem de lhe ir prestar vassalagem.
Não me passa pela cabeça! Olharam-no estupefactos. Egas Moniz insistiu: Afonso
VII é o vosso suserano, não lhe podeis recusar a vassalagem. Não sou eu que
tenho de lhe prestar homenagem. Porque não vai meu primo pôr cerco a Coimbra?
Tem medo da meia dúzia de gatos-pingados que ainda lambem as botas a Fernão
Peres Trava? Eu é que não vou, de rabo entre as pernas, ajoelhar-me a seus pés,
numa tenda de campanha!
Mas que casmurrice, insistiu Egas. Olvidais que, em menos
de uma semana, haverá fome na cidade? Afonso olhou-o desafiante. Egas Moniz
respirou fundo, desviando o olhar, mas só para o pousar nos restantes, dizendo:
não aguentamos o cerco nem quatro dias, meus senhores. O nosso príncipe tem de
obedecer ao seu suserano! Lutaremos, bradou o Grosso. Gonçalo e eu trouxemos homens connosco. A vossa meia
centena de guerreiros contra as forças d’el-rei? Gozamos da protecção das
muralhas. Com uma atitude destas, atalhou Afonso, meu primo prova que é, pelo
menos, fraco de ideias. Quem nos diz que não o afugentaremos, se lhe dermos
luta?
Depois de dois dias de combates, as hostes de Afonso VII,
com as suas armas de arremesso, haviam matado vários guerreiros e habitantes de
Guimarães e provocado estragos nas muralhas. Mas Afonso insistia em que não era
ele que devia prestar vassalagem ao primo e, sim, sua mãe. Egas Moniz
perguntava-se porque fazia el-rei tanto arraial à volta de Afonso Henriques? O
infante era simplesmente um herdeiro, não regia sobre fosse o que fosse e nunca
havia feito algo de surpreendente, nem sequer provara ainda ser bom guerreiro.
Exceptuando os acontecimentos dos últimos dois dias, as únicas pelejas em que
participara haviam sido os treinos e os torneios entre amigos. Teria o primo
ficado realmente impressionado com ele, quando o vira, havia ano e meio, depois
da investidura em Zamora? Se sim, dona Teresa tinha, pelo menos, atingido um
dos seus objectivos. Mas Guimarães sofria, numa luta desigual. E, perante a
teimosia do infante, Egas Moniz resolveu ir, em segredo, prosear com el-rei. O
senhor das terras de São Martinho, Lamego e Neiva deixou a cidade sozinho,
desarmado. Logo foi interceptado por duas sentinelas leonesas: quem sois e que
pretendeis aqui? Chamo-me Egas Moniz de Ribadouro e pretendo falar a el-rei. Depois
de um momento de estupefacção, os soldados curvaram-se numa vénia e um deles
perguntou: vindes em representação de Afonso Henriques? Venho, mentiu o fidalgo».
In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O
Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
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