segunda-feira, 6 de maio de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «O passado, sempre ele, levara-o a encontrar coisas inimagináveis. Objectos que dinheiro algum podia comprar. Se o mundo soubesse»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) O seguinte era parecido, com um brasão diferente e texto mais curto.

Aos 8 de Novembro de 1985, na Cidade do Vaticano.
Determino a prorrogação do acordo, celebrado aos 8 de Novembro de 1960, por período idêntico, findo o qual se definirão novos ajustamentos com os herdeiros.
Cumpra-se e assine-se.
Johanes Paulus P. P
Ben Isaac
(E mais cinco assinaturas ilegíveis)

Ben Isaac leu e releu os textos. Relembrou as negociações. Os cardeais os prelados, os núncios apostólicos, os simples curas que durante dois anos iam e vinham com recomendações, oblatas, cominações, vitupérios..., os Cinco Cavalheiros. Nunca conheceu João XXIII nem João Paulo II, apesar de todos assinarem o documento. Talvez esse tivesse sido o erro. Demasiados enviados especiais, quando teria sido mais simples sentarem-se à mesma mesa e conversado. Um núncio chegou a oferecer-lhe dez milhões de dólares pelos documentos, antes do primeiro acordo. Duvidava que João XXIII tivesse oferecido tal quantia. O certo é que depois do acordo assinado nunca mais foi incomodado. Tantos erros cometidos ao longo do tempo. Isto nada tinha a ver com religião. Pensou em Magda, o que lhe embargou os olhos de lágrimas, depois Myriam invadiu-lhe a mente. O passado, sempre ele, levara-o a encontrar coisas inimagináveis. Objectos que dinheiro algum podia comprar. Se o mundo soubesse. Talvez fosse necessário que soubesse em breve. Por Magda.
Deitando um último olhar aos pergaminhos, Ben Isaac suspirou. Olhou para o relógio. Estava na hora. Voltou-lhes as costas e saiu do cofre em direcção às escadas. Estava velho de mais para a guerra, mas não lhe voltaria as costas. A vida era uma guerra... nada mais.
O tempo terminou. O acordo acabou.

O velho arqueólogo tossiu e esperneou. A pancada não se fez esperar, firme e seca, sem remorso. Da próxima ponho-o a dormir, ciciou a voz ao seu ouvido, fria, aterradora. O velho arqueólogo sabia que ele dizia verdade. Apanhou-o da forma mais absurda que se possa imaginar. Um telefonema a meio da noite, inoportuno, mas não estranho. Acordou estremunhado e mal-humorado, mas o teor da conversa logo o despertou. Um pergaminho a precisar de tradução. Datava do século I, mas desconhecia-se a língua. A pessoa do outro lado da linha desfez-se em desculpas devido ao adiantado da hora, mas pagaria o que fosse preciso para que tão conceituado arqueólogo pudesse dar uma vista de olhos ao achado e dizer de sua justiça. Belas palavras que o seu ego raramente ouvia. O resto foi fácil. Um bilhete esperava-o no aeroporto na manhã seguinte que lhe dava acesso ao destino. Idiota, pensou. A mãe sempre lhe disse que ninguém dava nada a ninguém.
Quando chegou apanhou um táxi para a morada que o desconhecido lhe dera, enfrentou o caótico tráfego da hora de almoço que quase levou tanto tempo como o voo e, por fim, chegou à morada dada. Parecia um armazém-frigorífico abandonado. Um local estranho para um encontro destes. O cordial cumprimento, entre desconhecidos, que esperava foi um bofetão forte no rosto e um empurrão que o fez cair com a cara no chão. O sujeito, um homem magro que trajava um fato de corte elegante, pousou o joelho sobre as suas costas e colou-lhe o rosto ao chão com uma mão pesada. Em seguida, revelando uma forma física invejável, baixou a cabeça sobre o ouvido do arqueólogo. As regras são simples. Eu pergunto e o senhor responde. Qualquer alteração a este princípio terá consequências, entendido?» In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT