quarta-feira, 15 de maio de 2019

Contos e Fantasias Maria Amália Carvalho. «E toda dobrada sobre o ombro dele, meiga, eléctrica, fascinadora, com meneios de serpente, levava horas passeando pelo braço de Tadeu»

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«(…) E graciosa, maternal, afastando toda e qualquer ideia que não traduzisse uma solicitude encantadora para o seu companheiro da infância, Margarida foi o que seria a noiva idealizada pelo austero coração de Henrique. E dali em diante o amigo de Tadeu deixava-se arrastar de oito em oito dias até ao palacete dos marqueses. Era ali optimamente recebido. Margarida, adorada pelos pais, dava a lei em casa. Sabiam-na voluntariosa, cheia de caprichos e de fantasias, tinham medo de irritá-la resistindo-lhe… Depois, Henrique com as suas maneiras de gentleman, com a gravidade desafectada do seu porte, com os generosos ardores da sua rica organização, revelava-se o que era: um homem de futuro, um homem que havia de ter nome mais tarde. O marquês, cínico como a vida o tornara, era juiz excelente neste assunto. Conhecia um homem depois de duas horas de conversação. As próprias severidades do rapaz, amolecidas agora ao contacto da perturbadora formosura de Margarida, agradavam ao marquês como uma coisa nova, picante, inteiramente imprevista para ele. Tadeu nadava num júbilo celeste. Era muito bem tratado; Margarida tinha com ele umas garridices angélicas que ás vezes o deixavam pálido e sufocado, encostado a uma árvore ou a um banco do jardim para não cair no meio do chão desfeito em lagrimas.
Tadeu tinha agora de vez em quando um odio selvagem à sua mesquinha e enfezada personalidade. Se ele não fosse como era... Se fosse alto, esbelto, forte... Pode ser... Tem-se visto tanta coisa... E também ficava absorto, idiota, seguindo com um olhar esgazeado umas visões que o iam enlouquecendo. Ela no entanto vinha alegre, radiosa, cheia de vida, com o seu vestido de foulard cor de carne a desenhar-lhe as formas flexíveis, com uma rosa nos seus cabelos louros, dava-lhe o braço, e arrastava-o enlevado e estúpido pelas alamedas do jardim. Conta-me lá o que tu fazias quando eu cá não estava! Conta-me em que pensavas. Estavas muito triste? Quando é que viste pela primeira vez o teu amigo Henrique? Que lhe dizias tu de mim? E ele?... Ele que ideia fazia desta endiabrada pessoa que tu lhe descreveste tanta vez com a tua fantasia de poeta, porque tu quando se trata de mim és poeta, meu pobre Tadeu! Anda, fala, conta-me o que faziam, gosto tanto de te ouvir! E toda dobrada sobre o ombro dele, meiga, eléctrica, fascinadora, com meneios de serpente, levava horas passeando pelo braço de Tadeu.

Um ano depois desta época, Margarida declarava terminantemente aos pais que voltava para França, que ia morrer freira no convento onde vivera educanda, se eles a não casassem com Henrique. E dizia-lhes estas palavras numa tal violência de gritos e de soluços, tão magra, tão empalidecida naquela lacta íntima de doze longos meses, que o marquês encolheu os ombros com a suprema indiferença que fazia dele um viveur, e que a marquesa animada pela placidez do marido ao encarar esta questão magna, declarou à filha, hoje seus únicos amores, que ia fazer tudo para lhe dar o noivo da sua alma, o escolhido pela sua ardente paixão juvenil. Teve medo de ver a filha definhar-lhe e morrer-lhe nos braços. Via-a tão abatida, tão triste, tão enfastiada da vida, que a ideia de perdê-la sobrelevou a todos os seus escrúpulos de rica e de fidalga. Margarida autorizada pelos pais pôde dizer a Henrique, que o amava!
Quanto amor! Que entusiasmo febril neste sublime impudor da criança opulenta, formosa, aristocrática, disputada por dezenas de noivos tão ricos e tão nobres como ela, que vem espontaneamente oferecer a sua mão e a sua vida inteira ao obscuro plebeu que passa confundido no meio das multidões desconhecidas! E esse impudor, ninguém mais fidalga e altivamente do que Margarida o soube ter. Sabia-se adorada, estremecida, sabia que um riso dela bastaria para as alegrias e para as torturas de uma semana passada por Henrique na labutação da sua mesquinha existência; mas sabia também que ele era tão grande, tão forte, tão orgulhoso e digno que podia morrer, mas que morreria calado, sem que uma palavra revelasse o seu martírio!» In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História Verdadeira, Wikipedia.

Cortesia de LLivros/JDACT