segunda-feira, 13 de maio de 2019

Dez Anos Depois… Natália Correia. «A noite, reservava-a para os amigos e os admiradores no Botequim, que abriu com a poetisa Isabel Meyreles, nos anos sessenta»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Natalidade de Natália
«(…) Natália Correia está hoje numa espécie de limbo. Limbo é o local onde repousam as almas dos grandes inocentes e dos grandes perversos, ou seja das crianças e dos criadores, que ela era, até ao excesso. Não se tornava fácil compreendê-la. Nem amá-la. Fazê-lo, exigia sentimentos, disponibilidades especiais. Era um ser tocado pelo sagrado, um desses seres que não cabem no espaço que lhes foi destinado, nem no corpo, nem nas normas, nem nos modelos, nem nos sentimentos. Os que a não aguentavam, combatiam-na não pelas ideias mas pelos tiques, não pela criação mas pela distracção, tentando reduzi-la a anedotários de efeitos fáceis e falsos. Ao mesmo tempo forte e desprotegida, imponente e indefesa, egoísta e generosa, arguta e ingénua, dissimulada e frontal, sentia-se, ante as coisas rasteiras (e as pessoas, e as acções) perdida; só as grandes a tocavam, galvanizando-a. Então toda ela ganhava golpe de asa, vertigem. Era esplendoroso vê-la a entrar nos templos de chicote em punho, isto é, de palavra viva, zurzindo os vendilhões, os traficantes, os hipócritas, os videirinhos. Era magnífico acompanhá-la nas suas estradas de Damasco em direcção à utopia, ao amor, à justiça, à criatividade, à elegância, levando pelo braço poetas e amantes, perseguidos e ostracizados, loucos e solitários. Poetisa, dramaturga, romancista, ensaísta, cronista, conferencista, deputada, oradora, editora, tradutora, Natália Correia marcou transversalmente várias gerações e identidades de nós. A literatura (através da ficção e da reflexão), a comunicação social (dos jornais e da TV), a política (de intervenções parlamentares e ideológicas), o convívio (de colóquios e tertúlias) foram os grandes campos onde se afirmou, se popularizou, se acrescentou.
A ilha (nasceu em S. Miguel) deu-lhe o gosto mágico pela vida. Ela é a mãe, é a fatalidade dos insulares, comentava. É o território do oculto, da partida, do regresso. Onde vos retiver a beleza de um lugar, há um deus que vos indica o caminho do espírito, avisava. A noção de Pátria e de Mátria, acrescenta a de Frátria. Frátria como símbolo de fraternidade, de igualdade, de equidade.
Bate-se pela recuperação do sagrado, do politeísmo, do femininista, do barroco, do diferente, e pelo repúdio da crucificação, do consumismo, do descontrolo demográfico, da arrogância indiferenciadora. Como atingir a paz com os olhos postos num só deus, se as guerras são fornecidas pela nossa fé na vitória sobre a fé dos outros!, interrogava-se. Os grandes mitos portugueses encontraram em si uma celebrante incomum: o mito do Andrógino (o ser completo, uno e plural), do Desejado (o que contém a resistência, não a desistência), de Pedro e Inês (a paixão, a volúpia pela morte), da Ilha (o espaço da esfinge, da iniciação). A todos dedicou obras próprias, reformulando-os, dando-lhes dimensões de novos futuros e liberdades. As causas, as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação. Sabia indignar-se com grandeza, e indignar os outros à sua altura. Muitas vezes perdia a cabeça connosco e nós com ela. Sufocava-nos. Muitas vezes apetecia-nos fugir. Não aguentávamos a sua energia, a sua lucidez, a sua exigência, o seu empenhamento, a sua implacabilidade. Muitas vezes tentámos matá-la em nós para sermos nós. Até nisso nos ajudou. Era uma mulher inigualável. Nos caprichos, nos excessos, nas iras, nas premonições, nos exibicionismos, na sedução, na coragem, na esperança. Cantava, dançava, declamava, improvisava, discursava, polemizava como poucos entre nós alguma vez o fizeram, o somaram.

As Noites do Botequim
A noite, reservava-a para os amigos e os admiradores no Botequim, que abriu com a poetisa Isabel Meyreles, nos anos sessenta. Vendo o marido arruinado (fora um hoteleiro próspero), arranjou-lhe, no Largo da Graça, um pequeno bar para administrar, e se ocupar. Espaço único, marcaria a vida política e cultural portuguesa das últimas décadas do século. Por ele, pelas suas madrugadas, passaram (até fechar em 1995) projectos exaltantes, exultantes, de artes, de utopias, de generosidades, de cumplicidades; pela sua saleta de veludos e músicas, inúmeras estratégias de revoluções, de ficções foram feitas, desfeitas, sem desânimo nem remorso. Romances e filmes, peças e recitais, debates e canções, quadros e fantasias, viagens e homenagens nasceram nas suas mesas, entre rosbifes e champanhes, generais e presidentes, embaixadores e vadios, loucos e amantes, sob a energia, a natalidade de Natália que fez dele, para a nossa memória, para nosso afecto, um casulo, um sol nas noites e um luar nos dias». […] In Fernando Dacosta

In Natália Correia, Dez Anos Depois…, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Secção de Estudos Franceses do DEPER, 2003, ISBN 972-935-080-9.

Cortesia de FLUPorto/SUF/DEPER/JDACT