Cortesia
de wikipedia e jdact
A
Natalidade de Natália
«(…)
Natália Correia está hoje numa espécie de limbo. Limbo é o local onde repousam
as almas dos grandes inocentes e dos grandes perversos, ou seja das crianças e
dos criadores, que ela era, até ao excesso. Não se tornava fácil compreendê-la.
Nem amá-la. Fazê-lo, exigia sentimentos, disponibilidades especiais. Era um ser
tocado pelo sagrado, um desses seres que não cabem no espaço que lhes foi
destinado, nem no corpo, nem nas normas, nem nos modelos, nem nos sentimentos. Os
que a não aguentavam, combatiam-na não pelas ideias mas pelos tiques, não pela
criação mas pela distracção, tentando reduzi-la a anedotários de efeitos fáceis
e falsos. Ao mesmo tempo forte e desprotegida, imponente e indefesa, egoísta e
generosa, arguta e ingénua, dissimulada e frontal, sentia-se, ante as coisas
rasteiras (e as pessoas, e as acções) perdida; só as grandes a tocavam,
galvanizando-a. Então toda ela ganhava golpe de asa, vertigem. Era esplendoroso
vê-la a entrar nos templos de chicote em punho, isto é, de palavra viva,
zurzindo os vendilhões, os traficantes, os hipócritas, os videirinhos. Era
magnífico acompanhá-la nas suas estradas de Damasco em direcção à utopia, ao amor,
à justiça, à criatividade, à elegância, levando pelo braço poetas e amantes,
perseguidos e ostracizados, loucos e solitários. Poetisa, dramaturga,
romancista, ensaísta, cronista, conferencista, deputada, oradora, editora,
tradutora, Natália Correia marcou transversalmente várias gerações e
identidades de nós. A literatura (através da ficção e da reflexão), a
comunicação social (dos jornais e da TV), a política (de intervenções parlamentares
e ideológicas), o convívio (de colóquios e tertúlias) foram os grandes campos
onde se afirmou, se popularizou, se acrescentou.
A ilha (nasceu em S. Miguel)
deu-lhe o gosto mágico pela vida. Ela é a mãe, é a fatalidade dos insulares, comentava.
É o território do oculto, da partida, do regresso. Onde vos retiver a beleza
de um lugar, há um deus que vos indica o caminho do espírito, avisava. A noção
de Pátria e de Mátria, acrescenta a de Frátria. Frátria como símbolo de
fraternidade, de igualdade, de equidade.
Bate-se pela recuperação do
sagrado, do politeísmo, do femininista,
do barroco, do diferente, e pelo repúdio da crucificação, do consumismo, do
descontrolo demográfico, da arrogância indiferenciadora. Como atingir a paz
com os olhos postos num só deus, se as guerras são fornecidas pela nossa fé na
vitória sobre a fé dos outros!, interrogava-se. Os grandes mitos
portugueses encontraram em si uma celebrante incomum: o mito do Andrógino (o
ser completo, uno e plural), do Desejado (o que contém a resistência, não a
desistência), de Pedro e Inês (a paixão, a volúpia pela morte), da Ilha (o
espaço da esfinge, da iniciação). A todos dedicou obras próprias,
reformulando-os, dando-lhes dimensões de novos futuros e liberdades. As causas,
as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as
pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera,
o chiste, a indignação. Sabia indignar-se com grandeza, e indignar os outros à sua
altura. Muitas vezes perdia a cabeça connosco e nós com ela. Sufocava-nos.
Muitas vezes apetecia-nos fugir. Não aguentávamos a sua energia, a sua lucidez,
a sua exigência, o seu empenhamento, a sua implacabilidade. Muitas vezes tentámos
matá-la em nós para sermos nós. Até nisso nos ajudou. Era uma mulher
inigualável. Nos caprichos, nos excessos, nas iras, nas premonições, nos
exibicionismos, na sedução, na coragem, na esperança. Cantava, dançava,
declamava, improvisava, discursava, polemizava como poucos entre nós alguma vez
o fizeram, o somaram.
As
Noites do Botequim
A noite, reservava-a para os
amigos e os admiradores no Botequim, que abriu com a poetisa Isabel Meyreles, nos
anos sessenta. Vendo o marido arruinado (fora um hoteleiro próspero),
arranjou-lhe, no Largo da Graça, um pequeno bar para administrar, e se ocupar.
Espaço único, marcaria a vida política e cultural portuguesa das últimas
décadas do século. Por ele, pelas suas madrugadas, passaram (até fechar em 1995)
projectos exaltantes, exultantes, de artes, de utopias, de generosidades, de
cumplicidades; pela sua saleta de veludos e músicas, inúmeras estratégias de
revoluções, de ficções foram feitas, desfeitas, sem desânimo nem remorso. Romances
e filmes, peças e recitais, debates e canções, quadros e fantasias, viagens e
homenagens nasceram nas suas mesas, entre rosbifes e champanhes, generais e
presidentes, embaixadores e vadios, loucos e amantes, sob a energia, a natalidade
de Natália que fez dele, para a nossa memória, para nosso afecto, um casulo, um
sol nas noites e um luar nos dias». […] In Fernando Dacosta
In Natália Correia, Dez Anos Depois…, Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
Secção de Estudos Franceses do DEPER, 2003, ISBN 972-935-080-9.
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