terça-feira, 21 de maio de 2019

A Bela Adormecida Vai à Escola. Gonzalo Ballester. «Pelo torn da voz, o Rei conheceu a magnitude da censura. Sim, Gibbs, já sei. Tu cumpres o teu dever para que eu cumpra o meu»


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A casinha do bosque
«(…) Gibbs sentiu-se defraudado como todas as manhãs. Havia muitos anos que desejava que o Rei respondesse ao seu chamamento e saltasse da cama agilmente, como aqueles gentlemen que ele servira durante os anos de aprendizagem. Mas o Rei empenhava-se em não ser um gentleman, tal como se ernpenhava em não ser bastantes coisas. Diga-se em abono de Gibbs que a sua cara não traduziu o desapontamento porque, se o seu pensamento nâo era muito respeitoso para com o Rei, era-o sempre para com o seu senhor. Limitou-se a pegat nurn velho relógio despertador, a dar-lhe corda e soltá-la muito perto da orelha real. A campainha fez um estrépito horrível e Canuto saltou da cama. Que se passa, Gibbs?, perguntou com voz assustada.
Bom dia, senhor. Está uma excelente manhã. Aquelas palavras bastavam para que o Rei se situasse na realidade quotidiana. Aquilo que Gibbs acrescentava sempre a mesma coisa, contribuia para firrnar a sua situação e dar-lhe uma certa consistência. São oito horas em ponto, sire. Lamento ter-me visto na necessidade de fazer uso do despertador. Está bem, Gibbs. Que horas são? Já lhe disse, Majestade: oito em ponto. O Rei deitou uma olhadela à marrhã. O aspecto cinzento da neblina desanimou-o. Devias deixar-me dormir até às nove, Gibbs. Nas manhãs como esta não há ninguém nas ruas, e o meu passeio é muito aborrecido. Por que é que nem ao menos uma vez te esqueces de me chamar? Ficava-te muito agradecido. Gibbs atreveu-se a olhá-lo com assombro. Majestade!
Pelo torn da voz, o Rei conheceu a magnitude da censura. Sim, Gibbs, já sei. Tu cumpres o teu dever para que eu cumpra o meu. Procurou os chinelos às apalpadelas, e quando os encontrou pôs-se de pé. Gibbs, entretanto, acorrera com a bandeja. O châ, Majestade. A água quente para se lavar e barbear. Como se barbeará hoje Sua Maiestade? Com navalha ou com máquina? Canuto demorou a decidir-se, porque aquele era um dos poucos actos verdadeiramente livres que lhe eram permitidos, e todas as manhãs o gozava com dramática fruição, como se estivesse a escolher entre a vida e a morte. Com navalha, disse finalmente, com o mesmo entusiasmo com que se tivesse decidido continuar a viver. Gibbs pegou numa navalha e assentou-a na palma da mão com movimentos de grande sabedoria, enquanto o Rei, sentado numa cadeira, aproveitava a barba para continuar a sonhar. Mas a água estava fria, e o frio na pele fez-lhe dar um safanão. Que água tão fria, Gibbs! Quando terei eu uma casa de banho como deve ser? Gibbs continuou a ensaboat a real epiderme. Os reis deste país, sire, nunca tiveram casa de banho. É uma tradição e as tradições não se podem alterar. Além disso, o orçamento real não dá para instalar uma casa de banho em condições, com as suas tubagens, as suas torneiras de níquel e todas essas coisas tão brilhantes que se vêem nas lojas do ramo e que nunca se sabe para que servem, mas que são caríssimas.
Canuto suspirou». In Gonzalo Torrente Ballester, A Bela Adormecida Vai à Escola, 1983, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1052-7.

Cortesia de Caminho/JDACT