sexta-feira, 31 de maio de 2019

No 31. Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Afinal, eu era português. Mesmo que tivesse dificuldade em prová-lo, teria de tentar. Para mais, sabia que Sebastião Carvalho Melo, o Carvalhão, que eu conhecia dos meus tempos de juventude»

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«(…) Nos quarenta anos que levo de vida, estive preso em três ocasiões. A primeira foi quando os piratas árabes atacaram o barco português onde era piloto, e me levaram refém para África, na esperança de conseguirem um bom resgate. Foram dois duros anos de cativeiro. A minha libertação teve um preço amargo e, ressentido como estava com o rei português, iniciei uma vida nova como pirata, em barcos árabes. Mais de uma década passou, entre abordagens, abalroamentos e viagens pelo mundo. Contudo, três meses antes do grande terramoto de Lisboa tive azar. O meu barco, pois ao fim de tanto tempo já era capitão de um barco-pirata, cruzou-se a sul do Algarve com uma esquadra francesa, que nos perseguiu e acabou por apanhar. Muitos dos meus companheiros árabes, como anos antes acontecera aos portugueses, foram chacinados à minha frente pelos franceses. Só eu e o meu ajudante, o meu amigo Muhammed, fomos poupados. Quando chegámos a Lisboa, o capitão francês revelou a sua boa vontade para com os portugueses entregando-nos como prémio. É sabido que as relações dos reinos de França e Portugal não eram, e não são ainda, as melhores. Sendo a França aliada da Espanha, e Portugal aliado da Inglaterra, temia-se uma guerra. A esquadra francesa tinha, pois, de cair nas boas graças lusitanas e diminuir as suspeitas quanto à sua presença. Que melhor forma do que entregar prisioneiros piratas, odiados e temidos por todos os reinos?
Pela segunda vez na vida, fui preso, desta vez no Limoeiro, onde o terramoto me apanhou. Nessa manhã, aliás, o meu dia já se revelava emocionante. Pouco passava das nove quando um violento murro me atingiu, e caí para trás desamparado, estatelando-me no chão do pátio da cadeia. Os espanhóis tinham-me surpreendido. Não estava à espera de que me apanhassem ali, nas latrinas, a céu aberto, à frente dos outros prisioneiros. Nas últimas semanas, a tensão entre mim e o chefe dos castelhanos era crescente. Na cadeia, embora existissem vários bandos, o dos espanhóis, composto por desertores da última guerra, era o maior e mais perigoso. O seu líder chamava-se Cão Negro, e era um homem enorme, de quase dois metros de altura, um colosso de força e maldade. Usava o cabelo negro longo a cair-lhe pelas costas e uma barba igualmente negra e igualmente longa, e impusera com violência a sua tirania sobre o estabelecimento. Ouviam-se relatos de gargantas cortadas, de homens asfixiados só por o terem confrontado, e até os guardas o temiam.
Quando eu e o meu amigo árabe chegámos, o Cão Negro deixou-nos em paz nas primeiras semanas. Muhammed não considerara, isso um bom prenúncio. Ele ir atacar nós, Santamaria ir ver. Muhammed, um pirata berbere, baixo e magro, há mais de uma década que me acompanhava nas aventuras marítimas. Várias vezes me desafiara para passar por Lisboa, mas eu nunca quisera voltar. Guardava um ressentimento congelado ao reino de Portugal por não ter pago o resgate que me salvaria das prisões árabes. Mas, agora que cá estava, nascera em mim um imparável desejo de justiça, uma necessidade urgente de corrigir o destino. Considerava que Portugal tinha uma dívida para comigo e que agora chegara o momento de a pagar, libertando-me do Limoeiro. Afinal, eu era português. Mesmo que tivesse dificuldade em prová-lo, teria de tentar. Para mais, sabia que Sebastião Carvalho Melo, o Carvalhão, que eu conhecia dos meus tempos de juventude, era secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra do reino. Certamente que ele se lembrava de mim, tínhamos vivido juntos alguns episódios inesquecíveis. Assim, no final do primeiro mês de cativeiro, escrevera-lhe uma petição, apresentando-lhe argumentos em defesa da minha libertação. Muhammed ficara preocupado: E Muhammed? Se rei ir perdoar Santamaria, Muhammed ir ficar aqui sozinho? Dissera-lhe que, mal fosse libertado, trataria de safá-lo também a ele. Mas o árabe era desconfiado. Santamaria mentir! Santamaria ir deixar Muhammed com Cão Negro, e eles ir enra… e ir matar Muhammed! Para minha desilusão, as semanas tinham passado e a petição não obtivera resposta. Entretanto, o ambiente na prisão tornara-se hostil. Os espanhóis estimulavam as quezílias, e certo dia um dos tenentes do Cão Negro exigira que eu fosse despejar as latrinas. Recusara e o Cão Negro aproximara-se uma manhã, no pátio da prisão, acompanhado do seu gangue. A um metro de mim, ameaçara: cabrón, vais morrer aqui. És tu quem manda?, perguntei». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

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