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O
Medalhão de Ouro
«(…) Que dizia? Ora não tinha vontade
própria!, interrompia-me Diogo. Vou para lhe responder de forma directa e
incisiva, mas, depois de breve perscrutação interior aos pensamentos que se me
atropelam e entrechocam com incrível rapidez, decido, para chegar ao ponto,
fazer uma incursão por mais longe: notaste decerto a liberdade que temos tido,
a facilidade com que o dom Abade nos deu suas licenças para sairmos por tanto
tempo... Notara, sim. Mas sobretudo notara, e o espantava ainda agora, o modo
como o superior o chamara e lhe comunicara, melhor, lhe ordenara que se
dispusesse a acompanhar-me. Embora ainda não tivesse votos, tal como eu,
aprazia-lhe desde já ser obediente como se os tivera. Curvara a cabeça em sinal
de acatamento e o superior dispensara-se de lhe dar qualquer esclarecimento.
Dizia-lhe a consciência que não devia alimentar em seu espírito qualquer
espécie de curiosidade, para que fosse mais acabado o seu desapego do mundo. Tens
razão. Se há defeito que um bom franciscano não deve ter é o da curiosidade,
quando ela tem sua fronteira com o mexerico. Existe, porém, outra espécie de
curiosidade que faz parte inerente do espírito humano, naturalmente sequioso de
saber os segredos da obra de Deus e os seus desígnios quanto ao destino do
homem.
A santa religião, os santos
doutores de Igreja já disseram a última palavra sobre o assunto, João. Recorda o
nosso padre Santo Agostinho. Mas Santo Agostinho teve de decidir por si, foi a
sua vontade que executou o que o seu pensamento havia ditado. Deu-nos Deus
livre alvedrio e eu parece que o não tenho. Se o tivesse... Não blasfemes...,
estaria em posição de aceitar ou negar o tomar dos votos e das ordens. No
entanto, tenho e cultivo a curiosidade: a curiosidade de saber qual o meu
destino; a curiosidade de conhecer este mistério que me rodeia e leva o superior
a calar-se em tudo o que me diz respeito; a curiosidade de chegar ao porquê de
eu não poder escolher se sim, se não; a curiosidade... Ah! Mas isso sabia eu!
Irmão Diogo conhecia porque fora ele o indigitado para me acompanhar? Figurava
que essa indigitação devia ter dado muito que pensar ao superior e a não sei
quem mais?
João, confundes-me. Era preciso
um noviço, mas não um noviço qualquer..., um noviço muito especial. Estou a
vê-los: frei Nédio, inquire o superior. Queira Vossa Paternidade dizer,
responde frei Nédio, que de nédio não tem nada. Conheceis algum noviço que não seja
nada, mesmo nada, curioso? Saiba Vossa Paternidade que sim. O seu nome? É o
irmão Diogo, meu padre. Deus vos acrescente, frei Nédio. Podeis retirar-vos... Vossa
Reverência dá licença?, conheces a voz de falsete? Frei Luís, sabeis de algum
noviço que não seja nada, mesmo nada, dado aos livros? Nada, mesmo nada?...
Distingo. Tenho o noviço que demandais. E qual é a sua graça? Diogo,
reverendíssimo prior, Diogo. Nosso Senhor vos abençoe, frei Luís. Não preciso
mais de vós. Frei Archer, é porventura do vosso conhecimento algum noviço que,
além de ter boa voz para os hinos da capela, goste de ser hortelão ou
cozinheiro? A resposta é um vozeirão: bom cantor, bom hortelão, bom cozinheiro?
Não há que ver, só há um: o irmão Diogo.
Agradecido, frei Archer. Rezarei
por vós nas minhas orações. Podeis ir. E o superior suspira de alívio e
manda-te chamar. Diogo ri a bandeiras despregadas: Mas que terão as couves
murcianas e as alfaces a ver com o ter sido eu o escolhido para te acompanhar? Paro
um pouco a olhá-lo nos olhos e depois digo-lhe: nem as couves nem as alfaces
falam. O trabalho do hortelão é um trabalho silencioso, religioso, franciscano.
A horta é como um templo e o hortelão, vendo a novidade a medrar e a crescer,
está a rezar. Diogo, muito sério, murmura numa voz que quase não se ouve: não
sei dizer essas coisas como tu. Mas é assim precisamente que sinto quando estou
a tratar da horta. Queda-se um longo momento a olhar para mim. Um pouco mais
adiantado paro também. O seu rosto ilumina-se quando me diz: e tens tu dúvidas,
tu que és franciscano por dentro!... Guardamos um grande silêncio, ali
estacados no caminho, mas aquelas palavras reboam dentro de mim, como se eu
seja um oco vale ou uma gruta vazia a cuja boca se lança um grito, um repto,
que a ressonância nos devolve em ondas reboladas». In Fernando Campos, A Casa do Pó,
Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT