sábado, 4 de maio de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Era preciso um noviço, mas não um noviço qualquer..., um noviço muito especial. Estou a vê-los: frei Nédio, inquire o superior. Queira Vossa Paternidade dizer, responde frei Nédio…»

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O Medalhão de Ouro
«(…) Que dizia? Ora não tinha vontade própria!, interrompia-me Diogo. Vou para lhe responder de forma directa e incisiva, mas, depois de breve perscrutação interior aos pensamentos que se me atropelam e entrechocam com incrível rapidez, decido, para chegar ao ponto, fazer uma incursão por mais longe: notaste decerto a liberdade que temos tido, a facilidade com que o dom Abade nos deu suas licenças para sairmos por tanto tempo... Notara, sim. Mas sobretudo notara, e o espantava ainda agora, o modo como o superior o chamara e lhe comunicara, melhor, lhe ordenara que se dispusesse a acompanhar-me. Embora ainda não tivesse votos, tal como eu, aprazia-lhe desde já ser obediente como se os tivera. Curvara a cabeça em sinal de acatamento e o superior dispensara-se de lhe dar qualquer esclarecimento. Dizia-lhe a consciência que não devia alimentar em seu espírito qualquer espécie de curiosidade, para que fosse mais acabado o seu desapego do mundo. Tens razão. Se há defeito que um bom franciscano não deve ter é o da curiosidade, quando ela tem sua fronteira com o mexerico. Existe, porém, outra espécie de curiosidade que faz parte inerente do espírito humano, naturalmente sequioso de saber os segredos da obra de Deus e os seus desígnios quanto ao destino do homem.
A santa religião, os santos doutores de Igreja já disseram a última palavra sobre o assunto, João. Recorda o nosso padre Santo Agostinho. Mas Santo Agostinho teve de decidir por si, foi a sua vontade que executou o que o seu pensamento havia ditado. Deu-nos Deus livre alvedrio e eu parece que o não tenho. Se o tivesse... Não blasfemes..., estaria em posição de aceitar ou negar o tomar dos votos e das ordens. No entanto, tenho e cultivo a curiosidade: a curiosidade de saber qual o meu destino; a curiosidade de conhecer este mistério que me rodeia e leva o superior a calar-se em tudo o que me diz respeito; a curiosidade de chegar ao porquê de eu não poder escolher se sim, se não; a curiosidade... Ah! Mas isso sabia eu! Irmão Diogo conhecia porque fora ele o indigitado para me acompanhar? Figurava que essa indigitação devia ter dado muito que pensar ao superior e a não sei quem mais?
João, confundes-me. Era preciso um noviço, mas não um noviço qualquer..., um noviço muito especial. Estou a vê-los: frei Nédio, inquire o superior. Queira Vossa Paternidade dizer, responde frei Nédio, que de nédio não tem nada. Conheceis algum noviço que não seja nada, mesmo nada, curioso? Saiba Vossa Paternidade que sim. O seu nome? É o irmão Diogo, meu padre. Deus vos acrescente, frei Nédio. Podeis retirar-vos... Vossa Reverência dá licença?, conheces a voz de falsete? Frei Luís, sabeis de algum noviço que não seja nada, mesmo nada, dado aos livros? Nada, mesmo nada?... Distingo. Tenho o noviço que demandais. E qual é a sua graça? Diogo, reverendíssimo prior, Diogo. Nosso Senhor vos abençoe, frei Luís. Não preciso mais de vós. Frei Archer, é porventura do vosso conhecimento algum noviço que, além de ter boa voz para os hinos da capela, goste de ser hortelão ou cozinheiro? A resposta é um vozeirão: bom cantor, bom hortelão, bom cozinheiro? Não há que ver, só há um: o irmão Diogo.
Agradecido, frei Archer. Rezarei por vós nas minhas orações. Podeis ir. E o superior suspira de alívio e manda-te chamar. Diogo ri a bandeiras despregadas: Mas que terão as couves murcianas e as alfaces a ver com o ter sido eu o escolhido para te acompanhar? Paro um pouco a olhá-lo nos olhos e depois digo-lhe: nem as couves nem as alfaces falam. O trabalho do hortelão é um trabalho silencioso, religioso, franciscano. A horta é como um templo e o hortelão, vendo a novidade a medrar e a crescer, está a rezar. Diogo, muito sério, murmura numa voz que quase não se ouve: não sei dizer essas coisas como tu. Mas é assim precisamente que sinto quando estou a tratar da horta. Queda-se um longo momento a olhar para mim. Um pouco mais adiantado paro também. O seu rosto ilumina-se quando me diz: e tens tu dúvidas, tu que és franciscano por dentro!... Guardamos um grande silêncio, ali estacados no caminho, mas aquelas palavras reboam dentro de mim, como se eu seja um oco vale ou uma gruta vazia a cuja boca se lança um grito, um repto, que a ressonância nos devolve em ondas reboladas». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT