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e wikipedia
O interdito ligado à morte
O interdito do assassínio
«(…) Em certas condições, por um
certo tempo, permite-se o assassínio dos membros de uma tribo determinada, e
isto chega a ser mesmo necessário. Entretanto, as mais loucas hecatombes, a
despeito da leviandade dos que dela são culpados, não suspendem inteiramente a
maldição que atinge o homicídio. Se, às vezes, a Bíblia ordenando: não matarás
nos faz rir, este nosso riso não deixa de ser enganador. Uma vez derrubado o obstáculo,
o interdito desrespeitado sobrevive à transgressão. O mais cruel dos assassinos
não pode ignorar a maldição que o atinge. Pois a maldição é a condição da sua
glória. Transgressões multiplicadas não podem vencer o interdito, como se este nunca fosse senão o meio de
atingir com uma gloriosa maldição o que ele rejeita. Há na proposição
acima uma verdade primeira: o interdito fundado pelo medo não nos propõe
somente observá-lo. A contrapartida não falha nunca. Derrubar uma barreira é, em
si, algo de atraente; a acção proibida adquire um sentido que não tinha antes,
quando um terror, ao nos afastar dela, cercava-a com um halo de glória. Nada,
escreve Sade, contém a libertinagem..., a verdadeira maneira de espalhar e
multiplicar os desejos é querer lhe impor limites. Nada contém a
libertinagem..., ou melhor, de forma geral, não há nada que reduza a violência.
O interdito ligado à reprodução
Um
interdito universal opõe-se em nós à liberdade animal da vida sexual.
Mais
adiante chegarei à relação complementar que une o interdito, que rejeita a violência,
a movimentos de transgressão que a liberam. Estes movimentos de contrapartida
têm uma espécie de unidade: ao mostrar o momento em que se cria uma barreira e
o momento em que ela é derrubada, cheguei a questionar um grupo de interditos paralelo
ao que suscita a morte. Só num segundo momento é que eu poderia falar dos interditos
cujo objecto é a sexualidade. Temos indícios muito antigos dos costumes que dizem
respeito à morte: os documentos pré-históricos sobre a sexualidade são mais recentes;
são enfim tantos que deles nada podemos concluir. Há sepulturas do paleolítico médio,
mas os testemunhos da actividade sexual dos primeiros homens não vão além do paleolítico
superior. A arte (a representação), que não aparece no tempo do homem de Neandertal, começa com o Homo sapiens, cujas imagens
que nos deixou dele mesmo são, diga-se de passagem, raras. Essas imagens são em
princípio itifálicas. Sabemos, pois, que a actividade sexual, da mesma forma
que a morte, interessa os homens desde cedo, mas não podemos, como no caso da
morte, deduzir de um dado tão vago uma indicação clara. As imagens itifálicas,
evidentemente, testemunham uma liberdade relativa. Elas não podem, entretanto,
provar que os que as desenharam cultivavam, nesse plano, a liberdade sem
limite. Podemos dizer somente que, em oposição ao trabalho, a actividade sexual
é uma violência que, enquanto impulso imediato, poderia perturbar o trabalho:
uma colectividade laboriosa, no momento do trabalho, não pode ficar à sua
mercê. Somos pois levados a pensar que, desde a origem, a liberdade sexual teve
de ser limitada pelo que se pode chamar de interdito, sem, no entanto, nada
podermos dizer dos casos em que ele se aplicava. Quando muito, podemos
acreditar que, inicialmente, o tempo do trabalho determinou esse limite. A
única razão verdadeira que temos para admitir a existência muito antiga de um
tal interdito é o facto de que em todos os tempos e em todos os lugares, na
medida em que vamos obtendo informações, o homem é definido por uma conduta sexual
subordinada a regras, a restrições definidas: o homem é um animal que permanece
interdito diante da morte e da união sexual. Ele não o é inteiramente, mas num
e noutro caso sua reacção difere da dos outros animais». In Georges
Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM
Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972-608-018-3.
Cortesia
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