domingo, 12 de maio de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Nada é para sempre. Tudo está em imutável transmutação. A água do rio, do mar, do oceano, o vento, as nuvens, o atrofiar dos corpos, a corrupção dos cadáveres, os segundos, os dias…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) O arqueólogo juraria que o homem se estava a babar como um cão raivoso enquanto ditava a ordem. Quem é você?, indagou aflito. Estava-lhe a custar a respirar. A pancada colou-lhe ainda mais o rosto ao chão imundo. Eu é que faço as perguntas, entendido? O senhor deve-se ter enganado na pessoa. Sou um mero arqueólogo. Valia a pena tentar esclarecer. Os agressores não são infalíveis como os pontífices. Yaman Zafer. É esse o seu nome? É, mas... Está a ver como não custa nada? Vamo-nos entender na perfeição, zombou o homem respirando bem em cima do ouvido de Zafer. Ouça, eu... Nova pancada na nuca que o fez ver estrelas. Eu pergunto. O senhor responde. Não é uma relação perfeita? Zafer calou-se. Não tinha muitas opções. O melhor era calar-se e ver no que aquilo daria. Não conseguia respirar em condições com o joelho a pressionar-lhe o abdómen contra o chão. Estava completamente dorido. Se colaborar deixo-o respirar, disse o agressor. Falava a sério. Está bem, aquiesceu. Não mandava nada ali. Por que não pediu mais informações antes de se meter no avião? Por que se deixou convencer tão facilmente? Foi tão ingénuo. O agressor parecia ter ouvido os seus pensamentos.
É tão fácil dizer o que as pessoas querem ouvir. Vamos ao assunto que nos trouxe aqui. Humedeceu os lábios. Já ouviu falar de e um homem chamado Bem Isaac? Zafer estremeceu, se é que era possível fazê-lo. Vou encarar isso como um sim, sibilou o agressor. Quero que me conte tudo. Aliviou um pouco o joelho e Zafer, aproveitando para sorver a maior quantidade de oxigénio que conseguiu, levou a mão ao bolso exterior do casaco, mas a indulgência durou pouco. Tornou a sentir a pressão incómoda sobre os pulmões. O agressor sabia o que fazia. Qual era o teor do projecto para que foi contratado em 1985? Nova pergunta. Qual projecto? Nova pancada na nuca, com força. Nunca fiz nenhum trabalho para Ben Isaac, explicou Zafer. Talvez o deixasse em paz. Se quer ir por aí, avisou o agressor, terei todo o prazer em fazer uma visita à Mónica e ao Matteo. Estou certo de que me irão adorar. Sorriu com uma expressão escarninha. Zafer sentiu um arrepio frio ao ouvir o nome dos filhos. Eles não. Não podia pôr em perigo a vida deles. Perdeu. Preciso de reformular a pergunta?, insistiu o agressor friamente. Não, disse Zafer a custo. Começava a custar-lhe falar devido à falta de ar. Eu falo. Conto tudo o que quer saber. O joelho implacável aliviou a pressão fornecendo ar a Zafer que o aproveitou como se de alimento se tratasse. Sou todo ouvidos. Zafer sentiu-se envergonhado e humilhado. Sentia que não sobreviveria, mas tinha de o afastar dos filhos. Perdoa-me, Ben.

Nada é para sempre. Tudo está em imutável transmutação. A água do rio, do mar, do oceano, o vento, as nuvens, o atrofiar dos corpos, a corrupção dos cadáveres, os segundos, os dias, as noites, esta noite..., nada é estático, nem mesmo uma cadeira, esta cadeira dentro desta sala encardida e pardacenta com uma lâmpada gordurosa de 40 watts a pender do tecto, mesmo por cima dela. A madeira que compõe a cadeira está já carunchosa. Um dia deixará de ser o que é para se tornar noutra coisa qualquer. A lâmpada acabará por não acender um dia ou uma noite e esta sala, no interior deste armazém abandonado, será demolida, juntamente com o armazém, para dar lugar a um condomínio de luxo que, mais tarde, se tornará noutra coisa qualquer. Tudo muda..., sempre.
A luz da lâmpada falhava a espaços mergulhando a sala nua numa escuridão dúbia e suspeitosa. Por vezes faiscava no interior do vidro como uma trovoada, antes de tornar a iluminar com a intensidade que lhe era consentida, reflectindo principalmente sobre a cadeira e deixando os cantos inundados de uma penumbra fantasmagórica. A sala não tinha janelas. Uma porta de chapa branca era o único acesso. O tempo acabara por sujar a tinta original da porta e das paredes com nódoas de desmazelo». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT