Cortesia
de wikipedia e jdact
Vaticano.
19 de Abril de 2005
«(…) O arqueólogo juraria que o
homem se estava a babar como um cão raivoso enquanto ditava a ordem. Quem é
você?, indagou aflito. Estava-lhe a custar a respirar. A pancada colou-lhe
ainda mais o rosto ao chão imundo. Eu é que faço as perguntas, entendido? O
senhor deve-se ter enganado na pessoa. Sou um mero arqueólogo. Valia a pena
tentar esclarecer. Os agressores não são infalíveis como os pontífices. Yaman
Zafer. É esse o seu nome? É, mas... Está a ver como não custa nada? Vamo-nos
entender na perfeição, zombou o homem respirando bem em cima do ouvido de
Zafer. Ouça, eu... Nova pancada na nuca que o fez ver estrelas. Eu pergunto. O
senhor responde. Não é uma relação perfeita? Zafer calou-se. Não tinha muitas
opções. O melhor era calar-se e ver no que aquilo daria. Não conseguia respirar
em condições com o joelho a pressionar-lhe o abdómen contra o chão. Estava
completamente dorido. Se colaborar deixo-o respirar, disse o agressor. Falava a
sério. Está bem, aquiesceu. Não mandava nada ali. Por que não pediu mais informações
antes de se meter no avião? Por que se deixou convencer tão facilmente? Foi tão
ingénuo. O agressor parecia ter ouvido os seus pensamentos.
É tão fácil dizer o que as
pessoas querem ouvir. Vamos ao assunto que nos trouxe aqui. Humedeceu os lábios.
Já ouviu falar de e um homem chamado Bem Isaac? Zafer estremeceu, se é que era
possível fazê-lo. Vou encarar isso como um sim, sibilou o agressor. Quero que
me conte tudo. Aliviou um pouco o joelho e Zafer, aproveitando para sorver a
maior quantidade de oxigénio que conseguiu, levou a mão ao bolso exterior do
casaco, mas a indulgência durou pouco. Tornou a sentir a pressão incómoda sobre
os pulmões. O agressor sabia o que fazia. Qual era o teor do projecto para que
foi contratado em 1985? Nova pergunta. Qual projecto? Nova pancada na nuca, com
força. Nunca fiz nenhum trabalho para Ben Isaac, explicou Zafer. Talvez o deixasse
em paz. Se quer ir por aí, avisou o agressor, terei todo o prazer em fazer uma
visita à Mónica e ao Matteo. Estou certo de que me irão adorar. Sorriu com uma expressão
escarninha. Zafer sentiu um arrepio frio ao ouvir o nome dos filhos. Eles não.
Não podia pôr em perigo a vida deles. Perdeu. Preciso de reformular a pergunta?,
insistiu o agressor friamente. Não, disse Zafer a custo. Começava a custar-lhe
falar devido à falta de ar. Eu falo. Conto tudo o que quer saber. O joelho
implacável aliviou a pressão fornecendo ar a Zafer que o aproveitou como se de
alimento se tratasse. Sou todo ouvidos. Zafer sentiu-se envergonhado e
humilhado. Sentia que não sobreviveria, mas tinha de o afastar dos filhos. Perdoa-me, Ben.
Nada é para sempre. Tudo está em
imutável transmutação. A água do rio, do mar, do oceano, o vento, as nuvens, o
atrofiar dos corpos, a corrupção dos cadáveres, os segundos, os dias, as noites,
esta noite..., nada é estático, nem mesmo uma cadeira, esta cadeira dentro
desta sala encardida e pardacenta com uma lâmpada gordurosa de 40 watts a pender
do tecto, mesmo por cima dela. A madeira que compõe a cadeira está já carunchosa.
Um dia deixará de ser o que é para se tornar noutra coisa qualquer. A lâmpada
acabará por não acender um dia ou uma noite e esta sala, no interior deste armazém
abandonado, será demolida, juntamente com o armazém, para dar lugar a um condomínio
de luxo que, mais tarde, se tornará noutra coisa qualquer. Tudo muda...,
sempre.
A
luz da lâmpada falhava a espaços mergulhando a sala nua numa escuridão dúbia e
suspeitosa. Por vezes faiscava no interior do vidro como uma trovoada, antes de
tornar a iluminar com a intensidade que lhe era consentida, reflectindo principalmente
sobre a cadeira e deixando os cantos inundados de uma penumbra fantasmagórica. A
sala não tinha janelas. Uma porta de chapa branca era o único acesso. O tempo
acabara por sujar a tinta original da porta e das paredes com nódoas de desmazelo».
In
Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN
978-972-004-325-2.
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