sexta-feira, 10 de maio de 2019

O Tesouro do Templo. Eliette Abecassis. «… após uma longa separação que cada um de nós julgava ser para toda a eternidade. Mas era como se essa eternidade tivesse findado naquele preciso instante. Dois anos..., murmurei»

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«(…) Gelado pelo terror que me invadira, recuei. Aquele sacrifício, com as sete marcas de sangue, era idêntico ao que o grande padre efectuava, no dia do Yorri Kippur antes de entrar no Santo dos Santos, onde devia encontrar Deus. Só que sacrificava touros. Porque razão se matara um homem daquela maneira? Qual o significado de tal acto? A poucos metros dali, as ruínas de Qumran formavam um grande quadrilátero. Aproximei-me do que restava das instalações que tão bem conhecia, onde, outrora, haviam trabalhado os meus antepassados, naquele deserto onde a água era tão vital quanto difícil de obter. Porém, as vozes, que não me largavam, a pouco-e-pouco enchiam-se de carne, transformando-se em corpos. Parecia-me vê-los agruparem-se em volta do grande tanque que assegurava o escoamento das águas sazonais, bem como o seu armazenamento, tirando do aqueduto a quantidade necessária ao consumo e à purificação e, das cisternas, a água potável para saciar a sede, ou afluindo até à piscina de águas límpidas, onde os meus antepassados purificavam almas e corpos. Parecia-me ver as suas túnicas brancas, a adejar solenemente, enquanto se dirigiam à sala de reuniões que servia de refeitório. Podia vê-los à volta da mesa, sentados segundo uma ordem hierárquica: primeiro, os padres, depois, os Levis, antes dos Numerosos. Quase podia ouvir os cozinheiros, ocupados na preparação da refeição, enquanto os oleiros coziam os seus potes nos fornos da oficina de cerâmica.
Podia ver os escribas a fazerem cópias dos rolos da comunidade, no scriptorium, hábeis no manuseamento dos seus instrumentos de escrita, de bronze e argila. Copiavam centenas de textos, que gravavam, dia e noite, em pergaminhos. Depois, ao anoitecer, via os membros da comunidade a regressarem às suas habitações, após as tarefas do dia. Viviam como nós, os essénios actuais, seus herdeiros, preparando, em segredo, a chegada do mundo futuro. No seu zénite, o Sol espalhava uma luminosidade ofuscante e não corria uma aragem. Apenas um calor sufocante, parecido com o que sentimos quando abrimos a porta de um forno. De súbito, estremeci. A sombra de um olhar pesava sobre as minhas costas. Porém, não era uma sombra do passado, uma imagem, nem, tão-pouco, uma presença desconhecida. Voltei-me e o meu coração deu um salto. Senti as pernas vacilarem e, durante breves instantes, julguei tratar-se de uma miragem. Nunca me passara pela cabeça que, um dia, voltaria a vê-la. Pensava que a tentação se afastara para sempre, julgava que a esquecera, mas enganara-me... Jane Rogers. Duas tranças curtas, lábios finos, rugas minúsculas nas têmporas, desenhando as letras do amor, olhos escondidos atrás de óculos de sol redondos e uma tez que eu não reconhecia: uma pele tisnada pelo sol de Agosto, a sul de Qumran, onde os raios solares incidem com maior intensidade, até levarem à loucura.
Jane. Não havia eu sonhado com ela todas as noites desde aquele dia em que entrara nas grutas? E, em torno da sua imagem, quantos remorsos, quanto arrependimento... Quantas vezes havia dito a mim mesmo: nada mais existe além dela, é tudo o que desejo, tudo a que aspiro. O meu olhar beijou a sombra projectada pelo seu corpo magro, coberto por calções de caqui e uma camisola de algodão branca. Por fim, consegui erguer os olhos e fitá-la. Ela tirou os óculos de sol. Ary.
No seu rosto, desenhava-se a letra yodh, em décima posição no alfabeto hebraico, que contém o número dez. Yodh, símbolo da realeza, da harmonia das formas, mas também do mundo futuro. É a letra mais pequena do alfabeto, porque yodh é humilde, embora, ao mesmo tempo, se trate de uma letra fundadora. Dez igual a um mais zero, número que evoca a causa primeira, a origem de todos os princípios... Já passou muito tempo - disse ela. Esboçou um gesto com a mão, como que para ma estender, mas deteve-se. Ali fiquei, imóvel, sem saber como deveria cumprimenta-la. Seguiu-se um silêncio, feito de embaraço e de surpresa, de reconhecimento e de perturbação, após uma longa separação que cada um de nós julgava ser para toda a eternidade. Mas era como se essa eternidade tivesse findado naquele preciso instante. Dois anos..., murmurei». In Eliette Abecassis, O Tesouro do Templo, 2001, Círculo de Leitores, ISBN 972-423-086-4, Editora Livros do Brasil, colecção Suores Frios, 2003, ISBN 978-972-382-671-5.

Cortesia de CLeitores/ELBrasil/JDACT