domingo, 19 de maio de 2019

A Rosa dos Ventos. Materiais para uma Opereta sem Música. Gonzalo Torrente. «Não sei o que pensou Franz Liszt, porque rasguei, sem ler, a carta com que me respondeu. Lamento que tenha sido…»

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«(…) Mandou chamar sua tia, a condessa Prisciliana, mulher de grande experiência; fechou-se com ela e, quando quis explicar-me o combinado pedi-lhe que o mantivesse secreto. Durante a gravidez escreveu vinte cartas a Liszt e recebeu três: não li nenhuma delas. Nasceu a menina e Amélia teve umas febres, que ocultou até já não haver remédio. Disse-me: obrigada, Ferdinando, e perdoa-me, e morreu. Esqueceu-se de me avisar de que a criança deveria chamar-se Myriam, mas eu não o havia esquecido. O meu primo, a Águia do Leste, teve um ataque de riso quando soube do nascimento de Myriam e da morte de Amélia. A Myriam, como presente, mandou-lhe um título de condessa, talvez para que não se visse obrigada, quando atingisse a maioridade, a andar pelo mundo com um nome que não fosse seu. Pois, é verdade, foi um pormenor do Águia! Os títulos do seu império andam muito cotados. Escrevi a Franz Liszt uma carta autógrafa na qual lhe dizia:

Meu caro senhor: há já uns meses que passou umas semanas no meu palácio e deleitou com a sua arte a então princesa reinante, minha esposa Amélia. Lamento ter que lhe comunicar a sua morte, assim como o nascimento da princesa Myriam, cujo desvalimento de mãe o meu povo tenta compensar com o seu entusiasmo. Não se esqueça de que fui seu amigo. Ferdinando Luís.

Não sei o que pensou Franz Liszt, porque rasguei, sem ler, a carta com que me respondeu. Lamento que tenha sido, se o foi, uma carta sublime, dessas que podem completar o retrato de um génio se algum curioso as descobre num arquivo ou num lote de leilão. Quanto a mim, posso dizer que a pequena Myriam me parecia tão indefesa, com a sua grande fronte prematura de músico excepcional, que me propus criá-la como se fosse minha. Rosanna ajudou-me durante muitos anos. Se alguma vez tive ciúmes, foi do amor que mutuamente mostravam, pelo receio de que algum dia me excluíssem dele, quando viessem a saber, inevitavelmente, que o pai delas é tonto. Enganei-me.

Uma vez, a Águia do Leste e eu encontrámo-nos em Marienbad: iam comigo as princesas e desejou conhecê-las. Quando isto sucedeu, se Carlos Frederico Guilherme pensava declarar guerra à França, ainda não o havia manifestado, mesmo que considerasse a guerra ganha. Que maneira ele tinha, num mundo com classe, de conduzir a sua patuda figura de janízaro misto! As minhas filhas saudaram-no com uma reverência impecável e com um desprezo tão discreto que nem ele, constantemente desconfiado, pôde captar, mas que me divertiu. Não assim o que imediatamente me comunicou:

Como Rosanna será tua herdeira, vai-a já preparando para o casamento com o nosso primo Raniero. Raniero pertence à melhor família da Silésia oriental, está na escola militar e, quando a tua filha tiver chegado à idade de casar, Raniero será, pelo menos, comandante. O teu grão-ducado é um dote suficiente, mas também indispensável, de modo que também te conviria ir pensando na abdicação como prenda de casamento.

Viu-se que, mais tarde, mudou de opinião porque não esperou, para nos invadir, pelo casamento de Rosanna e pela minha abdicação, da qual tardiamente veio a saber. Não deixa de ser curioso que Rosanna, muitíssimo parecida com sua mãe, goste de música como gosta e que, pelo contrário, Myriam, que conserva a sua ampla fronte de génio prematuro, mas que é suficientemente bonita, lhe interessem as ciências naturais. Ainda falam de parecenças!» In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.

Cortesia de Difel/JDACT