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O
Medalhão de Ouro
«(…) Tinha Hércules chegado à
adolescência e seguia por um caminho, quando se lhe deparou uma bifurcação.
Indeciso, sentou-se... Tal como nós..., a pensar por qual deles meteria... Tal
como nós... Eis que ao seu encontro e vindas de cada um dos caminhos se
aproximam duas mulheres jovens. A que avançava da esquerda vestia uma túnica
tão diáfana que permitia se lhe vissem as formas extremamente bem
proporcionadas do corpo, as ancas, o busto, as pernas, o rosado da carne, o
carmim dos bicos dos seios, a sombra violeta do púbis... Jesus!, benzeu-se
irmão Diogo. ...Os olhos, pintados, eram dois abismos de promessas e os lábios,
carnudos, vermelhos, sensuais, inculcavam beijos que, ...que?..., que nem tenho
nomes adjectivos, irmão Diogo, para os caracterizar. E dirigindo-se a Hércules
fez-lhe ver, em palavras suaves e numa voz quente e maviosa, quanto era boa a
saudável juventude dele, tão apta aos prazeres da vida, do lazer, da riqueza,
da luxúria... E enlaçava-o com os seus braços roliços e quentes, perfumados,
nos olhos cintilando revérberos de desejo, a boca aflorando-lhe a pele em
carícias indizíveis. Hércules sentia-se extasiado, enleado, tentado, e ia a
levantar-se para seguir a jovem, quando a outra lhe fez sinal que esperasse.
Era igualmente jovem, mas a sua beleza vinha de dentro, como que se lhe
espelhava no semblante a formosura da alma, todo o seu porte era recatado e sem
artifícios de pinturas ou perfumes, sem requebros do corpo nem desafios dos
olhos, isenta de sorrisos equívocos e de provocações na voz. Falou-lhe com
aquela contenção grave e sisuda que é timbre dos prudentes e avisados,
mostrando-lhe como eram falazes e ilusórios os prazeres do mundo e como a
virtude só se alcança seguindo o duro caminho do domínio do espírito sobre a
carne, dos sacrifícios e privações, da humildade, do esforço e do trabalho. Ao
fim desta penosa caminhada encontrar-se-ia, então, o prémio que a divindade reserva
aos justos e virtuosos. Não lhe prometia, se escolhesse segui-la, senão canseiras
e renúncias, mas o prémio final a coroar merecidamente a labuta e as atribulações
da vida. Qual dos caminhos escolheu Hércules? O segundo, respondo eu, enquanto desenho
no pó do chão a figura da estrada que se bifurca. Ainda bem!, sossega irmão
Diogo.
Pitágoras de Samos figurou na
letra Ipsilon o símbolo deste mito de Hércules. A vida humana decorria
como na forma dessa letra: a senda inicial e única representa a primeira idade,
uma idade incerta indefinida, nem dada aos vícios nem às virtudes; depois vem o
bivium, que
começa na adolescência, a via da direita uma via árdua que leva à vida feliz, e
a da esquerda um caminho fácil que vai dar ao labéu e à perdição. Muitas vezes
os que seguiam a sua filosofia e religião assinalavam as campas dos seus mortos
com lápides funerárias que representavam o bivio da letra pitagórica.
Qualquer coisa como agora, quando morre alguém, lá vêm os elogios públicos,
aquilo é que era um santo!... E tão bonzinho para toda a gente!... Não fazia
mal a uma mosca! O Senhor o tenha no Céu!... Também essas pedras tumulares
queriam dizer que o defunto sim senhor escolhera o caminho das agruras e
dificuldades, fugira dos prazeres fáceis e agora fruía nos Campos Elísios o prémio
da sua virtude...
Tomássemos então o caminho da
direita, exclamava o meu companheiro levantando-se. Ergo-me também. Reparasse
no entanto que neste caso era o da esquerda que parecia dirigir-se para Évora.
Mas Diogo, supersticioso, teima em que havemos de ir pelo da direita e é por
esse que metemos. Sem nenhuma oposição da minha parte. Tudo o que neste momento
me afaste de Évora representa para mim uma dilação cómoda. De caminho
prosseguimos a conversa: quanto mais próxima está a data da tomada de votos e
de ordens, mais o meu espírito se perturba com este terrível dilema. Também eu,
como Hércules, me encontro perante a encruzilhada da vida e tenho de tomar uma
decisão. E não é, de nenhum modo, a escolha entre o vício e a virtude, entre o
mundo e a sua renúncia, entre a carne e o espírito, entre o bem e o mal. Sei
bem que não é necessário ser-se padre para se ser um perfeito cristão. A minha
dúvida tem raízes mais fundas. É que não me sinto com vocação, sei-o bem. Sei
também que não foi por minha escolha que desde longa data me encontro entre
frades, que por eles fui educado, que sou noviço franciscano. O Senhor é
testemunha de que nada tenho contra eles, os bons irmãos de São Francisco.
Estou-lhes grato, pois tudo lhes devo. Aprecio o seu teor de vida, a sua
bondade, a sua singeleza, a sua humildade, a sua extasiada atitude perante a
obra do Criador. Se me fosse dado ter vontade própria...» In Fernando Campos, A Casa do Pó,
Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT