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Aprovado no exame da Ordem da Califórnia, em questão de meses encontrava-se
instalado num pequeno, mas esplendidamente decorado gabinete, como um dos
catorze advogados que trabalhavam para o êxito da firma de administração de
empresas de Thayer e Turner, em Rodeo Drive, Beverly Hills. Todos os clientes
eram célebres ou ricos, ou as duas coisas juntas, e a proximidade do êxito mais
uma vez deixou Barrett com esperanças de ganhar dinheiro a rodo. Contudo,
depois de quase dois anos de trabalho duro, extenuante, no seu escritório, na
biblioteca legal da firma, nos tribunais e nos gabinetes de constituintes
opulentos, durante os quais se especializou gradativamente em leis de
arrecadação tributária, Barrett chegou, aos poucos, à conclusão de que não
pertencia ao número dos que estavam marcados para vencer na vida. Possuía vários
predicados e mostrava-se friamente objectivo sobre eles. Não era bonito na
acepção clássica do termo, certo, mas tinha um rosto másculo, rude. Descendente
de polacos, irlandeses e galeses, tinha a cara áspera, marcada apenas por rugas
severas, leves resquícios de cenhos franzidos e olhos espremidos, frutos de
pessimismo e desenganos (como os de um ágil pugilista meio-pesado, ligeiramente
envelhecido, que começasse a ser esmurrado com maior frequência e ainda
estivesse nas semifinais). O cabelo era preto, emaranhado e fosco, os olhos
inquietos e errantes, o nariz curto e recto, as faces cavas, o queixo quadrado.
Media pouco menos de metro e oitenta, com ombros flexíveis e caídos, o corpo
rijo de um nadador. De aspecto descontraído, negligente e despreocupado,
representava a própria imagem da indolência, mas. como todo o homem, sabia que
havia outro por dentro: alerta, tenso, agachado, um corredor à espera do tiro
de partida. Só que o tiro nunca vinha.
No
trabalho, Barrett era sério, esforçado, calmo, perseverante. Quando queria,
sabia ser simpático (quando não carrancudo), pois era dotado de razoável senso
do ridículo e com forte tendência para o humor sardónico, além de ter um
instinto infalível para perceber as reacções alheias e compreender os móveis dos
seus comportamentos. Falava com facilidade e fluência, se o assunto lhe
interessava, o que já não acontecia com frequência. Em matéria de cultura,
ultrapassava o nível do leitor comum de sir William Blackstone. Pretendera
formar-se em literatura inglesa, mas também se inclinava para o lado prático, e
o direito oferecia horizonte mais amplo. Aliás, possuía duas qualidades raras,
de grande utilidade no exercício da profissão jurídica. A primeira consistia
numa memória quase anormal. A exemplo de predecessores mais ilustres, como o
rabino Elias, da Lituânia, que decorou o texto completo de dois mil e
quinhentos volumes eruditos, inclusive o Talmude e a Bíblia, e o cardeal
Mezzofanti, conservador da Biblioteca do Vaticano no século XIX, que aprendeu
186 idiomas e setenta e dois dialectos, o olho de Barrett parecia uma câmara
escura, captando para sempre o sagrado e o profano, o importante e o trivial, e
registando-os no cérebro, guardados ali para referência e lembrança imediatas.
Podia, se lhe pedissem, recitar a maior parte do Código de Hamurabi, a sentença
de Dred Scott, o testamento de Shakespeare e o epitáfio de sir John Strange (aqui
jaz um advogado honesto, o que não deixa de ser estranho). A segunda qualidade
era um espírito ávido, ardiloso, que apreciava mistérios, charadas, jogos,
todos os fenómenos inextricáveis de Charles Fort. Sabia-se talhado para a
profissão jurídica e sentia-se estimulado pela promessa de reptos imprevistos.
Comparada ao direito, a literatura servia apenas de derivativo, um degelo do
passado». In Irving Wallace,
Os Sete Minutos, Coleção Dois Mundos, Livros do Brasil, 1988, ISBN 978-972-380-948-0.
Cortesia
de CDMundos/LdoBrasil/JDACT