quinta-feira, 9 de maio de 2019

Os Sete Minutos Irving Wallace. «… a profissão jurídica e sentia-se estimulado pela promessa de reptos imprevistos. Comparada ao direito, a literatura servia apenas de derivativo, um degelo do passado»

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«(…) Aprovado no exame da Ordem da Califórnia, em questão de meses encontrava-se instalado num pequeno, mas esplendidamente decorado gabinete, como um dos catorze advogados que trabalhavam para o êxito da firma de administração de empresas de Thayer e Turner, em Rodeo Drive, Beverly Hills. Todos os clientes eram célebres ou ricos, ou as duas coisas juntas, e a proximidade do êxito mais uma vez deixou Barrett com esperanças de ganhar dinheiro a rodo. Contudo, depois de quase dois anos de trabalho duro, extenuante, no seu escritório, na biblioteca legal da firma, nos tribunais e nos gabinetes de constituintes opulentos, durante os quais se especializou gradativamente em leis de arrecadação tributária, Barrett chegou, aos poucos, à conclusão de que não pertencia ao número dos que estavam marcados para vencer na vida. Possuía vários predicados e mostrava-se friamente objectivo sobre eles. Não era bonito na acepção clássica do termo, certo, mas tinha um rosto másculo, rude. Descendente de polacos, irlandeses e galeses, tinha a cara áspera, marcada apenas por rugas severas, leves resquícios de cenhos franzidos e olhos espremidos, frutos de pessimismo e desenganos (como os de um ágil pugilista meio-pesado, ligeiramente envelhecido, que começasse a ser esmurrado com maior frequência e ainda estivesse nas semifinais). O cabelo era preto, emaranhado e fosco, os olhos inquietos e errantes, o nariz curto e recto, as faces cavas, o queixo quadrado. Media pouco menos de metro e oitenta, com ombros flexíveis e caídos, o corpo rijo de um nadador. De aspecto descontraído, negligente e despreocupado, representava a própria imagem da indolência, mas. como todo o homem, sabia que havia outro por dentro: alerta, tenso, agachado, um corredor à espera do tiro de partida. Só que o tiro nunca vinha.
No trabalho, Barrett era sério, esforçado, calmo, perseverante. Quando queria, sabia ser simpático (quando não carrancudo), pois era dotado de razoável senso do ridículo e com forte tendência para o humor sardónico, além de ter um instinto infalível para perceber as reacções alheias e compreender os móveis dos seus comportamentos. Falava com facilidade e fluência, se o assunto lhe interessava, o que já não acontecia com frequência. Em matéria de cultura, ultrapassava o nível do leitor comum de sir William Blackstone. Pretendera formar-se em literatura inglesa, mas também se inclinava para o lado prático, e o direito oferecia horizonte mais amplo. Aliás, possuía duas qualidades raras, de grande utilidade no exercício da profissão jurídica. A primeira consistia numa memória quase anormal. A exemplo de predecessores mais ilustres, como o rabino Elias, da Lituânia, que decorou o texto completo de dois mil e quinhentos volumes eruditos, inclusive o Talmude e a Bíblia, e o cardeal Mezzofanti, conservador da Biblioteca do Vaticano no século XIX, que aprendeu 186 idiomas e setenta e dois dialectos, o olho de Barrett parecia uma câmara escura, captando para sempre o sagrado e o profano, o importante e o trivial, e registando-os no cérebro, guardados ali para referência e lembrança imediatas. Podia, se lhe pedissem, recitar a maior parte do Código de Hamurabi, a sentença de Dred Scott, o testamento de Shakespeare e o epitáfio de sir John Strange (aqui jaz um advogado honesto, o que não deixa de ser estranho). A segunda qualidade era um espírito ávido, ardiloso, que apreciava mistérios, charadas, jogos, todos os fenómenos inextricáveis de Charles Fort. Sabia-se talhado para a profissão jurídica e sentia-se estimulado pela promessa de reptos imprevistos. Comparada ao direito, a literatura servia apenas de derivativo, um degelo do passado». In Irving Wallace, Os Sete Minutos, Coleção Dois Mundos,  Livros do Brasil, 1988, ISBN 978-972-380-948-0.

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