domingo, 5 de maio de 2019

O Retrato do Rei. Ana Miranda. «Um mordomo levou-a à sala de despacho de Fernando Lancastre. No corredor, cruzaram com o bispo. Francisco de São Jerónimo, conde de Santo Eulálio…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Contrato da Carne
«(…) Fernando fora nomeado governador por dom Pedro, o mui poderoso rei, por influência da rainha dona Maria Sofia de Neuburgo, que o tivera como protegido. Ambos, rei e rainha, agora estavam mortos. Que Deus os tivesse. O conde de Ericeira, também seu protector junto à Coroa, tinha dado fim à própria vida; jogara-se de uma janela, arrebentando-se no chão. Quem poderia, agora, levá-lo às boas graças de sua majestade? Rendom? Frei Francisco? Seria o confessor do rei um franciscano? De que lado do clero o novo monarca estaria? Dos jesuítas? Dos dominicanos? Teriam os senhores de Belmonte, da família de Rendom, influência junto à nova Corte que se formava no palácio da Ribeira? Fernando sentiu um imenso cansaço. Membros do seu conselho tentavam persuadi-lo a conceder renovação do contrato a frei Francisco, certamente subornados pelo pérfido trinitário. Entretanto, o rei tinha dado mostra de estar ao lado dos descobridores paulistas, como seu real pai. Mandara, pela frota que acabara de chegar, uma caixa contendo um presente régio da maior magnificência e esplendor.
Está bem, senhores. Farei a carta de suspensão e a enviarei com urgência ao senhor Borba Gato. Os paulistas trocaram um olhar vitorioso. O governador dirigiu-se a uma câmara reservada. Entrai, senhores. Gostaria de mostrar-vos algo. Retirou um pano preto que encobria um quadro. A imagem apareceu diante dos olhos maravilhados dos homens: um jovem de olhar pacífico e resoluto. Sob a pintura, a inscrição. Johannes Portugallia e Reges.

Mariana desceu a ladeira até à várzea. Cruzou a rua Direita e entrou na casa do governador, um prédio alto, guardado por soldados à entrada principal. As pessoas que esperavam na antecâmara tinham o ar de pedinte astucioso ou humilde, com excepção de um franciscano, que andava de um lado a outro, impaciente, com as mãos nas costas e que de vez em quando parava e olhava em direcção à porta da sala onde desejava entrar. Num banco mais afastado, dois rapazes seguravam cestas de hortaliças. Num canto, um soldado vigiava um homem acorrentado. Mariana foi prontamente recebida após o anúncio da sua chegada, o que causou admiração entre os que aguardavam, certamente há longas horas, serem atendidos pelo governador. O padre lançou-lhe um esgar irritado. Um mordomo levou-a à sala de despacho de Fernando Lancastre. No corredor, cruzaram com o bispo. Francisco de São Jerónimo, conde de Santo Eulálio, em brocatel de seda carmim e fio de ouro laminado, passou pela fidalga com o cenho franzido v cabisbaixo, sem notá-la. Fernando esperava-a em pé, na posição de alguém prestes a servir de modelo a um pintor, o corpo erecto, a mão esquerda sobre a mesa e a direita na cintura. Dona Mariana, curvou-se. Na presença de mulheres, sentia olhos críticos sobre si. Há quanto tempo não nos vemos. Nunca mais vos encontrei na missa, abandonastes as aulas de música no palácio, não viestes, em Janeiro, à festa comemorativa da coroação de nosso rei. O que está acontecendo? Tenho ido à missa nos Jesuítas, que é mais perto. Gosto de ficar em casa, olhando gravuras e o movimento na várzea». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.

Cortesia de ES/CdasLetras/JDACT