«(…) Eu também gostava de o ouvir, a esse mago, quando tocava, e também
quando falava e nos contava as suas recordações de pessoas famosas de Paris,
umas mortas, como Chopin, outras ainda vivas, como a famosa George Sand (de
quem, aliás, se ria). Apercebi-me sem grande esforço da simpatia mútua nascente
entre Amélia e Franz Liszt. Pensei na minha mulher: esta criatura pode ver a
sua beleza fanar-se sem ficar com uma recordação de amor e saí de casa. Pouco
depois de ler a carta de Liszt, Amélia veio, uma noite, aos meus aposentos e
confessou-me que estava grávida. Há muitas razões, entre outras, a nossa
lealdade mútua, pelas quais ponho nas tuas mãos a solução. Aceito, se for
legal, o repúdio, porque tens esse direito; também aceito o divórcio; estou
disposta, ainda assim, a partir e a ter um filho secreto, mas será um segredo
inevitavelmente relativo, porque ser sabido de todas as más línguas de Viena
faz parte do costume e do tolerável. Se te ocorrer alguma outra solução,
obedecer-te-ei.
Respondi-lhe que lhe agradecia muito, mais aquela prova de lealdade e
que, como compreendia a situação dela e a aprovava, lhe pedia que ficasse no
palácio e tivesse o filho como se fosse meu, se não a envergonhasse o facto de
a criança usar o meu nome e passar por legítima diante do mundo. Nesse
oferecimento vejo a nobreza do teu coração, mas peço-te que me dês algum tempo
para pensar. Admitirás, dada a tua magnanimidade, que consulte o pai?
Naturalmente, sabes onde está agora? Uma princesa reinante tem sempre um
pretexto para passar uns dias em Karlsbad. Avisa-me com antecedência da tua
viagem e terei tudo preparado. Foram e vieram cartas entre Amélia e Franz
Liszt. Não sei o que ele faria com as que recebia: eu atirei para o fogo as
cópias sem as ler porque, não será um direito básico de qualquer pessoa o
segredo do seu adultério?
Vou tal dia, disse-me Amélia; e tal dia partiu. Decidimos que o que vier
nasça aqui e passe por teu até atingir a maioridade e, então, lhe seja revelado
quem é. É esse o teu desejo? Não, respondeu, e começou a chorar; não acho justo
dar-te um filho para depois to tirar, e continuou chorando. Por algum gesto
involuntário deduzi que a sua entrevista com o génio das melenas escorridas, do
estupendo nariz, dos dedos como gaivotas, não tinha sido feliz: Amélia
havia-lhe falado da possibilidade de se divorciar, que ele recusou pelo facto
de a sua religião não lho permitir. O mais grave, contudo, foi a carta que o
meu primo enviou a Amélia. Não te lembras de que eu te proibi de teres mais
filhos? A que propósito te passou pela cabeça ficares grávida? Se for menina,
sorte vossa, do tonto com quem te casaste e tua; mas, se for varão, negar-lhe-ei,
com provas, a legitimidade e não o reconhecerei como herdeiro.
Caramba para a Águia do Leste, como chamava Amélia ao meu primo! Chegou
a altura do nascimento de Myriam. Disse-lhe: convém que encarregues alguém da
tua inteira confiança de revelar à tua filha quem é, quando chegar o momento,
para o caso de qualquer um de nós desaparecer. Pensas morrer?, perguntou-me com
susto. Não, mas convém prever tudo». In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos,
A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha,
1995, ISBN 972-29-0326-8.
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