quarta-feira, 8 de maio de 2019

Bala Santa. Luís Miguel Rocha. «… que à distância de dois ou três passos, certamente cientes de que o Sumo Pontífice jamais os recordaria nos seus sonhos, conversas, discursos…, mas nada disso importava»

Cortesia de wikipedia e jdact

Wojtyla. 13 de Maio de 1981
«(…) Alheio a tudo isso, o jovem de vinte e três anos aguardava a altura certa. A caravana distava ainda mais de cem metros e aproximava-se devagar. O polaco queria mesmo ser visto por cada um dos seus dilectos fiéis. Aproveita a tua última ovação, pensou para si mesmo. Daqui vais directo para a cova. Respirava a confiança própria da perene idade, excessiva e tonta que acaba por passar com o tempo, ou não, dependendo da vida que cada um leva e da força com que ela nos faz vergar à sua vontade, sem piedade ou misericórdia, sem contemplações. Cinquenta metros separavam a vida do vale das sombras da morte, a desventura da glória restrita, Wojtyla de Mehmet, respectivamente, sendo este último o nome do jovem imberbe de vinte e três anos, de mãos enfiadas nos bolsos do casaco, apesar da ausência de frio. Nada os unia naquele momento, um fiel disfarçado e o maior contrito de todos eles, ignorando que era o alvo do rapazola atirador profissional com currículo, preparado para adicionar a cereja ao bolo da carreira, aquela pelo qual jamais seria esquecido no seu mundo.
Aos quarenta metros as pessoas começaram a juntar-se cada vez mais, apertando-se, acotovelando-se umas às outras na esperança egoísta de conquistar uma melhor posição de visionação, quem sabe até roubar um olhar ao Santo Padre, um aceno pessoal e intransmissível, adicionado pelo sorriso bondoso. Ouro sobre azul, a sorte grande, que melhor fortuna poderia suceder do que ir a Roma, ver o papa e ser visto e cumprimentado por ele, mesmo que à distância de dois ou três passos, certamente cientes de que o Sumo Pontífice jamais os recordaria nos seus sonhos, conversas, discursos…, mas nada disso importava.
Os trinta metros entre o papa e o atirador revelaram um problema não calculado e incontrolável, a falta de liberdade de movimentos que o aperto da multidão provocava. Irónico, como aquilo que tornava o plano infalível, um tiro no meio da turba, disparado sabia-se lá de onde, por sabia-se lá quem, parecia naquele instante um entrave. Era como se parte das vinte mil pessoas, inconscientemente, é claro, tentassem proteger o seu pastor daquilo que não podiam prever nem nos mais calamitosos pensamentos. Ou então seria o Deus deles a ordenar a cada um dos presentes tal disposição. É certo que essa ideia lhe passou pela cabeça, mas, assim como imprevistamente surgiu, com igual rapidez a afastou. Era hora de agir, de se focar na tarefa em mãos, de neutralizar o alvo. Vinte metros. A euforia aumentava a cada passo, uma experiência de fé autêntica e sagrada que enchia de comoção o portento elíptico de Gian Lorenzo Bernini.
Desinteressado dessa experiência mística, Mehmet via a sua vida andar para trás, bem como o reconhecimento e admiração, mais a glória, ainda que restrita. Estava entalado entre uma idosa polaca em lágrimas que gritava palavras desentendidas na sua língua mãe, duas alemãs, mais um militar italiano engalanado com as conquistas de uma vida a tirar vidas em defesa do país, um entrevado numa cadeira de rodas, proveniente de Nápoles, e cinco irmãs das Missionárias da Consolata. Todos eles contribuíam em igual medida para o transtorno de Mehmet, que não encontrava, por muito que procurasse, a tão almejada via de fuga. Bastavam 50 centímetros de espaço ou até menos e ninguém o apanharia, mas, assim, mal tinha como tirar a arma do bolso. Raios, praguejava interiormente. O alvo sorria à multidão.
Dez metros. Mehmet conseguia descortinar todos os contornos do rosto e do corpo de Wojtyla. Àquela distância entrevia o seu sorriso benigno, a par dos gestos de agradecimento à multidão, estes repetidos infinitamente desde o início do trajecto, mas que pareciam sempre renovados, cativantes, sentidos. O papa emanava alegria, resplendor, esperança, e tudo isso provocava uma alteração psicológica nos presentes, um alento redobrado, uma esperança tão forte, que todos queriam um pouco do olhar, do sorriso e do aceno sagrado de João Paulo II. Mehmet desejava apenas um momento de menor aperto para poder aviar o feito com pleno vigor. A chuva teria, apesar de tudo, sido melhor aliada, mas o bom executor não procura desculpas na hora da verdade. Sairia dali a bem ou a mal, em último caso não sairia, riscos da profissão, mas a sua tarefa seria cumprida». In Luís Miguel Rocha, Bala Santa, Cavalo de Ferro Editores, Paralelo 40, Lisboa, 2007, ISBN 978-989-813-400-4.

Cortesia de CFerro/JDACT