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Wojtyla. 13 de Maio de 1981
«(…) Alheio a tudo isso, o jovem
de vinte e três anos aguardava a altura certa. A caravana distava ainda mais de
cem metros e aproximava-se devagar. O polaco queria mesmo ser visto por cada um
dos seus dilectos fiéis. Aproveita a tua última ovação, pensou para si mesmo.
Daqui vais directo para a cova. Respirava a confiança própria da perene idade,
excessiva e tonta que acaba por passar com o tempo, ou não, dependendo da vida
que cada um leva e da força com que ela nos faz vergar à sua vontade, sem piedade
ou misericórdia, sem contemplações. Cinquenta metros separavam a vida do vale
das sombras da morte, a desventura da glória restrita, Wojtyla de Mehmet,
respectivamente, sendo este último o nome do jovem imberbe de vinte e três
anos, de mãos enfiadas nos bolsos do casaco, apesar da ausência de frio. Nada
os unia naquele momento, um fiel disfarçado e o maior contrito de todos eles,
ignorando que era o alvo do rapazola atirador profissional com currículo,
preparado para adicionar a cereja ao bolo da carreira, aquela pelo qual jamais
seria esquecido no seu mundo.
Aos quarenta metros as pessoas
começaram a juntar-se cada vez mais, apertando-se, acotovelando-se umas às outras
na esperança egoísta de conquistar uma melhor posição de visionação, quem sabe
até roubar um olhar ao Santo Padre, um aceno pessoal e intransmissível,
adicionado pelo sorriso bondoso. Ouro sobre azul, a sorte grande, que melhor
fortuna poderia suceder do que ir a Roma, ver o papa e ser visto e cumprimentado
por ele, mesmo que à distância de dois ou três passos, certamente cientes de
que o Sumo Pontífice jamais os recordaria nos seus sonhos, conversas, discursos…,
mas nada disso importava.
Os trinta metros entre o papa e o
atirador revelaram um problema não calculado e incontrolável, a falta de
liberdade de movimentos que o aperto da multidão provocava. Irónico, como
aquilo que tornava o plano infalível, um tiro no meio da turba, disparado sabia-se
lá de onde, por sabia-se lá quem, parecia naquele instante um entrave. Era como
se parte das vinte mil pessoas, inconscientemente, é claro, tentassem proteger
o seu pastor daquilo que não podiam prever nem nos mais calamitosos
pensamentos. Ou então seria o Deus deles a ordenar a cada um dos presentes tal
disposição. É certo que essa ideia lhe passou pela cabeça, mas, assim como
imprevistamente surgiu, com igual rapidez a afastou. Era hora de agir, de se
focar na tarefa em mãos, de neutralizar o alvo. Vinte metros. A euforia
aumentava a cada passo, uma experiência de fé autêntica e sagrada que enchia de
comoção o portento elíptico de Gian Lorenzo Bernini.
Desinteressado dessa experiência
mística, Mehmet via a sua vida andar para trás, bem como o reconhecimento e admiração,
mais a glória, ainda que restrita. Estava entalado entre uma idosa polaca em
lágrimas que gritava palavras desentendidas na sua língua mãe, duas alemãs,
mais um militar italiano engalanado com as conquistas de uma vida a tirar vidas
em defesa do país, um entrevado numa cadeira de rodas, proveniente de Nápoles,
e cinco irmãs das Missionárias da Consolata. Todos eles contribuíam em igual medida
para o transtorno de Mehmet, que não encontrava, por muito que procurasse, a tão
almejada via de fuga. Bastavam 50 centímetros de espaço ou até menos e ninguém
o apanharia, mas, assim, mal tinha como tirar a arma do bolso. Raios,
praguejava interiormente. O alvo sorria à multidão.
Dez metros. Mehmet conseguia descortinar todos os contornos do
rosto e do corpo de Wojtyla. Àquela distância entrevia o seu sorriso benigno, a
par dos gestos de agradecimento à multidão, estes repetidos infinitamente desde
o início do trajecto, mas que pareciam sempre renovados, cativantes, sentidos.
O papa emanava alegria, resplendor, esperança, e tudo isso provocava uma
alteração psicológica nos presentes, um alento redobrado, uma esperança tão
forte, que todos queriam um pouco do olhar, do sorriso e do aceno sagrado de
João Paulo II. Mehmet desejava apenas um momento de menor aperto para poder
aviar o feito com pleno vigor. A chuva teria, apesar de tudo, sido melhor
aliada, mas o bom executor não procura desculpas na hora da verdade. Sairia
dali a bem ou a mal, em último caso não sairia, riscos da profissão, mas a sua tarefa
seria cumprida». In Luís Miguel Rocha, Bala Santa, Cavalo de Ferro Editores, Paralelo
40, Lisboa, 2007, ISBN
978-989-813-400-4.
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