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Wojtyla. 13 de Maio de 1981
«(…) Nada disso ofuscava a
concentração do bispo, que continuava o seu caminho na direcção do altar. Sua
Eminência necessita de alguma coisa?, pergunta um dos redentoristas com amável
simpatia, ainda que se tenha colocado no caminho do prelado com alguma rispidez,
o que não deve ser interpretado como rudeza, mas antes como vontade de servir. O
purpurado pára por momentos ao ver o seu caminho impedido e, como que voltasse
a reflectir, contornou o irmão responsável pelas confissões daquele dia. Saia-me
da frente, rosnou, só faltando empurrá-lo, coisa que provavelmente faria se não
o tivesse já contornado. Só faltava sair-me um dominicano ao caminho. O
objectivo do seu trajecto revelou-se ao fim de alguns metros, junto ao
baldaquino de bronze, quando desceu as escadas que levavam à cripta.
A cripta de Belém, também chamada
da natividade, é um lugar santo com um grande significado religioso e histórico.
Alberga, segundo parece, relíquias da Terra Santa, entre as quais figura nas tábuas
que pertenceram ao berço de madeira em que Jesus Cristo dormiu aquando do seu
nascimento. Tudo isso pode ser visto aqui nesta cripta onde Inácio de Loiola
deu a sua primeira missa no dia 25 de Dezembro de 1538, antes de fundar a célebre
Companhia de Jesus, que ainda hoje coabita entre nós. O purpurado desceu ao
santificado lugar, ajoelhou-se e benzeu-se. Perdoe-me, Pai, pois eu pequei,
suplicou baixando a cabeça em gesto de submissão e genuíno arrependimento. A
carne é fraca, sou um fraco. O demónio tenta-me diariamente e não tenho forças
para resistir. As lágrimas jorram dos olhos como água a abrir caminho pelos
trilhos da nascente.
Não é pouco o sofrimento do
purpurado nem a carga que lhe sopesa os ombros, fazendo-o vergar e implorar a
Deus Pai Todo-Poderoso pela sagrada misericórdia divina. Quem nunca pecou que
atire a primeira pedra sobre este bispo carpidor da Igreja Católica Romana,
pois se nem boa parte dos santos conseguiu passar a sua vida imune à sagacidade
do mal, ainda que lhe tenha resistido mais que os comuns mortais. Nesta cripta
estão enterrados papas e outros doutos da Igreja a quem o bispo vem pedir clemência
e força, já que o peso é demasiado para um homem só. Ajuda-me, meu São Jerónimo,
intercede por mim junto do Deus Menino, suplica o purpurado cobrando favores ao
santo ali sepultado, pois um bispo deve ser atendido antes dos outros fiéis ou
não fosse esse um dos privilégios de servir a Deus. Por tudo o que é mais
sagrado, tira-me este peso dos ombros. Deixa-me respirar. Levantou-se e retirou
uma chave que trazia pendurada ao pescoço numa volta de ouro. Colocou-a na fechadura
da porta e rodou. Apesar de não ser uma porta que se abrisse com frequência, não
revelou qualquer sinal da prisão dos tempos. Talvez porque o ouro se mantivesse
incorruptível ao longo dos séculos, superando as animosidades do clima, da História
e da loucura dos homens.
As entranhas seculares rodaram os
mecanismos interligados que abriram a arca. De dentro da batina, o prelado
retirou um sobrescrito amarelo e grande que depôs no interior. A expressão
pensativa durou uns instantes, o suor misturava-se com as lágrimas: o mesmo sal
para diferentes sensações. As várias manifestações do corpo na sua lógica reaccional.
Fechou os olhos ao mesmo tempo que rodou a chave, fechando a arca que guardaria
o segredo até quando a História decidisse julgá-lo, noutra época, nem melhor nem
pior, mas diferente desta, longínqua, quando já não restasse ninguém
relacionado com tal segredo no capítulo terreno. Mais calmo, recuou alguns
passos de cabeça baixa, em atitude submissa, mas nunca humilde. Meu Pai,
perdoa-me por tudo o que fiz, disse em voz grave e pesarosa. Abriu os olhos
ainda humedecidos e benzeu-se antes de virar as costas e sair da cripta. E pelo
que mandei fazer.
Mais ou menos à mesma hora a que o bispo saía da Basílica di
Santa Maria Maggiore, onde expiou os pecados que lhe massacravam a consciência,
João Paulo, o segundo Pastor dos Pastores com esse nome, fazia a sua aparição
na Praça de São Pedro perante as vinte mil pessoas presentes. Um corredor,
aberto pelas forças de segurança por entre os fiéis, indicava o caminho que o
carro, descapotável, comprado propositadamente para aquelas ocasiões, tomaria.
A multidão aclamava o Santo Padre, criando um clamor ensurdecedor que se
espalhava pela praça, vias e ruelas adjacentes. Era o papa, o mais santo entre
os santos, a voz de Deus na Terra. Quantos não pagariam por um momento destes,
de o poder ver ali, a dois ou três passos, a acenar, a sorrir, grato pela
visita e dedicação deles…, grato pela fé?» In Luís Miguel Rocha, Bala Santa, Cavalo de
Ferro Editores, Paralelo 40, Lisboa, 2007, ISBN
978-989-813-400-4.
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