sábado, 25 de maio de 2019

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Ide embora na santa paz de Deus Nosso Senhor, e num tom ainda mais alto, e orai pelos vossos pecados e a salvação do homem»

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«(…) E foi decerto pela sua irreprimível entrega à Igreja e às populações mais miseráveis de Roma que o Sumo Pontífice, reconhecendo ao homem razoáveis capacidades de esperteza e um teatral afecto na relação com os desgraçados, o designou para dirigir o grupo organizador da recepção à embaixada portuguesa. Nesse dia, o dia da nomeação papal, Francesco Petrini ficou radiante. E logo tomou a decisão de ir na mesma tarde ao anexo das traseiras do castelo de Sant’Angelo, onde, sabia-se, por costume se reuniam uns tantos profanos e alguns clérigos da cúria para discutir e proceder ao arranjo das festas de acolhimento às comitivas estrangeiras. No entanto, ao chegar ao anexo, não encontrou ninguém. Voltou no dia seguinte, e no outro, e no outro ainda, até que à quarta tentativa sem resultados foi ter com um subdiácono da Santa Sé, ordenando-lhe que mandasse convocar os elementos, já antes escolhidos pelo secretariado da chancelaria, para uma reunião de trabalho. Estava com pressa de mostrar serviço e de zelar pelo sucesso da obra. E para quando quereis que os convoque?, perguntou o padre. Quero-os amanhã lá, às três horas da tarde, respondeu o outro, sem hesitar. Todos: romanos e portugueses.
Raquel Aboab, a judia que em Dezembro partira de Lisboa por decisão e vontade de Diogo Pacheco, não fazia parte do grupo, mas, como se tornara amiga e protegida dos portugueses enviados a Roma pelo rei Manuel, com vista a ajudarem os romanos na preparação dos festejos, criou o hábito de os acompanhar para toda a parte. Por isso, foi sem cuidados nem reservas que a jovem compareceu ao encontro do dia seguinte, solicitado por Francesco Petrini. Quem vos convocou, mulher de Deus?, berrou o homem, estupefacto, quando viu a jovem a entrar na sala. Quem sois vós? Porque estais aqui? Apanhada de surpresa pela infeliz e agreste intervenção do eclesiasta, Raquel Aboab corou ligeiramente, e tentando a custo dominar a raiva e o medo, respondeu que era portuguesa, amiga dos portugueses enviados pela coroa de Lisboa para auxiliarem os romanos nos trabalhos de acolhimento à embaixada que dentro de poucas semanas haveria de chegar à Cidade Santa. E qual é a vossa graça?, perguntou ele, no mesmo tom boçal. Raquel. E que mais? Chamo-me apenas Raquel, mentiu. Tendes nome de judia...
Num completo estado de desassossego, já quase a chorar, a jovem negou a origem e propôs-se imediatamente sair do compartimento e regressar sozinha à casa que lhe dava abrigo desde a chegada a Roma. Esperai, esperai um pouco, ordenou D. Petrini, impositivo. E aproximando-se lentamente da mulher, quis saber onde ela morava e o que fazia. Moro perto daqui, num pobre casebre das Seculares Reparadoras da Virgem das Dores. E aí não fazeis trabalho de oração? Não devíeis estar lá numa atitude de constante penitência, de vigília consagrada a Deus e à Virgem? Estou de passagem por Roma, sou estrangeira, esclareceu a jovem, e só por isso as outras religiosas me concedem o favor de uma liberdade diferente da delas. Mas não deviam..., gritou o clérigo, reprovativo. Ide embora na santa paz de Deus Nosso Senhor, e num tom ainda mais alto, e orai pelos vossos pecados e a salvação do homem.
Uma chuva miudinha começava a cair sobre a cidade, a cidade de todos os vícios, como era conhecida na Europa cristã. Raquel Aboab assomou à porta, cobriu a cabeça com um véu oferecido por Diogo Pacheco e desatou a correr, chorando e soluçando em direcção à casa onde morava. A residência destinada à sua estada e segurança fora escolhida, a pedido de Diogo Pacheco, por João Faria, que, dizia-se em segredo, mantinha há vários meses uma relação íntima e secreta com a madre abadessa daquela Ordem religiosa. E era decerto por causa desta cumplicidade pecaminosa que Raquel, protegida de João Faria, dispunha de uma liberdade de movimentos jamais consentida a qualquer outra residente. A partir desse dia, o da expulsão da estrangeira, nunca mais as reuniões, mesmo as impontuais, decorreram como até aí. Os romanos já se haviam habituado a gostar da jovem e os portugueses adoravam-na. Além disso, pouco ou nada havia já para discutir ou organizar, e, no entanto, às três horas da cada tarde lá estava  Petrini a dar instruções e a tecer ideias mais do que gastas sobre a importância do acontecimento de alto relevo para a Igreja e Sua Santidade. Mas certo dia, tomado por um invulgar estado de boa disposição, ou talvez possuído por um retábulo de intenções poucos claras, o bispo quis saber pelos portugueses o que era feito da jovem das Seculares Reparadoras. E até se manifestou vagamente arrependido pelo tom agreste como a excluíra da assistência deles. Nunca mais a vi e julgo que nenhum de nós voltou a ter contacto com ela, respondeu o mais velho e responsável do grupo, tabelião de ofício e homem de extrema confiança da corte do rei português». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                                                                                                                 
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