sexta-feira, 3 de maio de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Era este santo, um físico ilustre de Nicomedia, na Bitinía, filho do gentio Eustórquio e de uma moça cristã chamada Eubula…»

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O Medalhão de Ouro
«(…) Todavia a divina Providência havia destinado que outro facto bem mais extraordinário viesse relegar esse para um plano não de esquecimento mas de momentâneo apagamento. Foi o caso que, ao meter inadvertidamente a mão num bolso, dei conta daquela tira de papel que havia caído do missal quando eu ajudara à missa. Estávamos já na capela. Um corredor ao meio, a todo o comprimento, separava as duas séries de bancadas. Dupla fila de sobrepeliz brancas segue em silêncio e abre a um lado e outro para nos acomodarmos nas fileiras daqueles longos assentos cujos espaldares serviam, para os de trás, de apoio cimeiro do genuflexório. Calhara-me encabeçar a entrada numa das fileiras, de modo que o meu lugar era junto da parede. Tinha apenas um companheiro à minha esquerda, o que sobremaneira me aprazia, pois gostava, sobretudo naquele momento, de estar isolado. Atrás de nós ouviam-se os passos dos que vinham chegando e se arrumavam. Enquanto esperávamos que as bancadas, à nossa rectaguarda, se fossem enchendo, num gesto inconsciente olhei a tira de papel que conservara na mão. Como a tinha amarrotado um pouco ela entreabrira-se e eu reparei que afinal não era uma tira mas uma folha dobrada a meio, no sentido longitudinal. Abri-a. Estava toda escrita de alto-a-baixo com uma letra miudinha, muito certa e alinhada como a régua. Logo às primeiras palavras pôs-se-me o coração, como um louco, a pulsar muito depressa e tudo o que estava à minha volta desapareceu. Fechei a folha e guardei-a no bolso, para sossegar e com medo de ser visto: ela referia-se a São Pantaleão! Precisava de estar só, mas estar só é coisa difícil numa comunidade. Praticamente, tirante a hora do sono e a do banho, só há uma ocasião em que se pode estar só. Aproveitei-a, logo que pude, e então, no recato pouco cómodo da sentina, li o que estava escrito naquela folha de papel.
Em 1453, no dia vinte e sete de Julho, fundeara em Miragaia, no rio Douro, uma embarcação tripulada por cristãos arménios que vinham fugidos das chacinas que Maomé II havia praticado nas longínquas terras do Império Romano do Oriente e sobretudo em Constantinopla. Quando as hordas daquele rei infiel saquearam a cidade, a custo aqueles cristãos conseguiram escapar e salvar da devastação furiosa dos ímpios as relíquias de São Pantaleão. Era este santo, um físico ilustre de Nicomedia, na Bitinía, filho do gentio Eustórquio e de uma moça cristã chamada Eubula. Havia a mãe sabido transmitir ao filho a verdade de Cristo e, no tempo do imperador Diocleciano, foi ele preso por causa da sua fé. Recebeu a coroa do martírio cerca do ano 303 da nossa era, sendo venerado, pelos seus extraordinários milagres, na Igreja Ortodoxa grega. As relíquias do taumaturgo, vindas agora para Portugal, foram depositadas na Igreja de S. Pedro de Miragaia, junto da qual aos arménios, que pediam asilo, foi concedido tomarem arruamento, constituindo-se eles foreiros do cabido da sé do Porto. Ainda hoje essa rua, se chama Rua dos Arménios. Esse mesmo ano abateu-se sobre o velho burgo portucalense uma terrível peste que ameaçou desde logo dizimar muitas vidas. Apegaram-se os fiéis a São Pantaleão e logo aquela pestilência se extinguiu.
Semelhante maravilha trouxe redobrado prestígio ao santo de Nicomedia, de modo que os burgueses da cidade, agradecidos, tendo à cabeça o seu prelado, o proclamaram padroeiro do Porto e, poucos anos volvidos, em doze de Dezembro de 1496, o bispo Diogo Sousa fez trasladar, com solene procissão em que se incorporou toda a gente do sítio e das redondezas, as santas relíquias para a sé catedral. Aconteceu, ademais, que em 1482 - subira ao trono por morte de Afonso V seu filho João, assolou o reino, vinda de Veneza, a peste grande que só na cidade de Lisboa fez sessenta mil vítimas. Ouvindo el-rei falar dos milagres que Deus fazia por intermédio do seu servo, o padroeiro da cidade do Porto, ateve-se àquele santo milagreiro e fez promessa de lhe mandar lavrar um relicário de prata que condignamente acolhesse as sagradas relíquias. O cumprimento desta promessa todavia foi-se atrasando, protelando e caindo quase no esquecimento, dados os agitados e perturbantes factos que sucessivamente foram abalando o reinado daquele monarca: a morte, em Setúbal, do duque de Viseu, às mãos do próprio rei; a execução do duque de Bragança, Fernando, na praça pública de Évora; o desastre trágico do príncipe Afonso, ao qual o rei pouco sobreviveu falando-se à puridade que a sua morte intempestiva não fora casual...» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT