segunda-feira, 6 de maio de 2019

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «A maioria dos visitantes sabia perfeitamente que Verona era a cidade de Romeu e Julieta, mas estar ali, sentir a atmosfera, mesmo com aquele tempo frio, reacendia os corações mais apagados»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Matteo sabia que não precisava de dizer mais nada. O resto deixava ao coração de cada um. Suspiros, lágrimas, beijos trocados, mãos dadas, nada ficava na mesma após aquela revelação. Para o turista que repetia a visita pela terceira vez, aquilo já não era novidade mas Matteo sabia que ele regozijava como se o tivesse ouvido pela primeira vez. Vira-o descer com o resto do grupo antes de assumir a posição junto ao pequeno altar, de costas para o sarcófago, e encostar-se a uma das colunas ao fundo. O que o guia veronês não imaginava era que o turista não estava minimamente interessado na visita.

A rotina do reverendo monsenhor Stephano Lucarelli, nos trêsdias que se seguiram, não conheceu excepções. Bernarda via-o sair logo depois de tomar o pequeno-almoço, equipado com fato impermeável, esquis e uma mochila que levava ao ombro. Não requisitou instrutor, pelo que Bernarda, nascida Mia, suspeitou que ele soubesse esquiar. Claro que sabe, tonta, convenceu-se. Aquele homem exalava solidez por todos os poros. Via o carro perder-se no fim da rua, pela janela do terceiro andar. Regressava, impreterivelmente, às cinco e meia da tarde, subindo os degraus da escadaria, energicamente. Cumprimentava-a com um sorriso cordial e depois entrava no quarto, fechando a porta suavemente. Minutos depois, Bernarda ouvia a água correr até à hora de ela ter de descer para levar o jantar ao prelado, deixando-o numa mesinha redonda, ao lado da porta dos aposentos, precisamente às seis e vinte e oito. Nessa altura o quarto estava mergulhado em silêncio. Bernarda imaginava-o a enxugar-se e a vestir-se e…, depois persignava-se.
A porta abria-se às seis e meia para revelar o reverendo monsenhor, vestido de batina preta com os tons violáceos, a recolher a bandeja com o jantar. Os serões dele eram passados ao telefone. Bernarda imaginava-o deitado na cama com o aparelho no ouvido. Mas sabia que não devia. Deus me perdoe. Os telefones do quarto eram sem fios e sentia-o vaguear pelo quarto enquanto falava. O italiano conferia-lhe um tom rude à voz que agradava à serva de Deus. Compreendia o suficiente mas coibia-se de ouvir o que ele dizia. Era indelicado escutar conversas que não lhe diziam respeito. A última chamada era sempre feita noutra língua. Uma mistura entre o italiano e o espanhol, mas que não era nem uma coisa nem outra. Talvez fosse um dialecto da terra do monsenhor, fosse ele de onde fosse. Era a mais curta de todas, não durava mais de três minutos. Depois disso o silêncio instalava-se definitivamente até à alvorada seguinte.

Ao quarto dia, segunda-feira, o turista voltou a aparecer no autocarro de Matteo Bonfiglioli. Repetiu o percurso dos três dias anteriores: Castelvecchio, depois a Basílica de San Zeno, ao início da tarde, onde o guia revelava o local de casamento de Romeu e Julieta, deixando os turistas boquiabertos, e, por fim, o clímax que acontecia a meio da tarde, numa parte do percurso que era feita a pé, quando Matteo apontava teatralmente para um brasão na fachada de um palácio da cor da ferrugem que mais parecia um castelo. Esta é a prova, minhas senhoras, declarava com ar enigmático. Aquele brasão que vêem ali é a prova de que a ficção é real. O que é?, perguntavam elas quase em uníssono. Este é o brasão dos Montecchi. Esta é a casa onde Romeu viveu, revelava, depois de mais uma pausa propositada. Novos suspiros seguiam-se a esta revelação de Matteo. A história de Shakespeare seria mesmo verdadeira? Cochichos e sorrisos inundavam o ar como pregões amorosos. A maioria dos visitantes sabia perfeitamente que Verona era a cidade de Romeu e Julieta, mas estar ali, sentir a atmosfera, mesmo com aquele tempo frio, reacendia os corações mais apagados.
O tour não incluía uma visita ao interior do palácio acastelado, nomeadamente aos aposentos de Romeu, ainda preservados, segundo Matteo, por se tratar de uma propriedade privada. Algumas expressões de desapontamento apareciam em alguns rostos, mas o guia tinha mais trunfos na manga». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT