domingo, 5 de maio de 2019

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «Água não é um género de primeira necessidade num museu; por essa razão, o segurança não volta à sala onde o homem o aguarda com a presteza que desejava, mas volta, e é isso que importa»

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Anno Domini MMVI
«(…) Todos os dias, passa por aquele quadro. Sabe da sua importância, mas não o porquê dela; é como a rua onde se mora: pensamos que já nasceu assim, com aquele nome, desde o início dos tempos. Mas não, tudo tem mão humana e algum significado histórico, religioso ou outro qualquer. Seja como for, é hora de fechar o museu, e o que importa é tirar o homem dali, fazer a última ronda e ir para casa. Os colegas ficarão cuidando do local. O segurança ainda levaria meia hora até Três Cantos, onde a mulher o esperava em casa com um cozido divino, embora ele não soubesse disso. Tem mesmo de sair, disse com mais firmeza, mas mantendo a educação, pois o homem não representa ameaça; pelo contrário, apenas parece estar magnetizado pelo quadro de Velázquez, que é bonito, no seu entender, mas não lhe perguntem mais. Olha mais atentamente para o velho, o viejo, e repara no tremor da mão esquerda e na lágrima que desce pela parte direita do rosto. O melhor é fazer-lhe a vontade e dizer qualquer coisa. É um quadro bonito. As Meninas, de Velázquez. Sabe quem são As Meninas? São essas garotas que estão no quadro.
Tolice. As Meninas são aquelas duas ao lado da infanta Margarita, Isabel Velasco e Agustina Sarmiento. Meninas é uma palavra portuguesa com que a família real cognominava as aias da infanta. Ah..., vivendo e aprendendo. Aquele pintor é o próprio autor do quadro, que aguarda que as aias convençam a infanta a posar para a pintura. Como pode ver pelo reflexo no espelho, a parte do rei Filipe IV e da rainha dona Mariana já está pintada. Trouxeram os anões e o cão para convencê-la, mas ela não cedeu, e o quadro nunca chegou a ser feito. Desculpe, mas o quadro foi feito. Está aqui à nossa frente. O quadro reflectido no espelho, ora. Ah. Mas isso poderá ser verdade ou não; já o quadro em si é real. O que quero dizer é que o quadro dentro do quadro nunca o foi. Bem, se está dizendo, deve ter razão. Repare como uma simples birra de criança altera o curso da história, sem permitir que se faça um retrato de família.
Mas possibilitou que se fizesse um que, porventura, é sempre maior do que esse. Talvez. O que quero dizer é que uma decisão, num determinado momento, afecta toda uma vida, todo um percurso pessoal, todo... O homem começa a tossir e quase cai, não fosse a prontidão reflexa do segurança, que o ampara. Deita-o no chão da sala, à falta de lugar melhor. Tenho a boca seca, diz o velho roucamente. Vou buscar um copo d'água. Só um momento, señor. O segurança sai correndo da sala número três do Museo Nacional del Prado. O velho, ainda deitado, tira um papel do bolso do casaco, uma carta amarrotada, escrita à mão, se por ele ou por outro, não o sabemos, mas sabemos que não a tirou para ler. Pousa-a no chão ao seu lado. Com a carta vem um retrato de Bento XVI, e logo procura por algo no outro bolso: um pequeno embrulho de veludo preto, que começa a abrir.
Água não é um género de primeira necessidade num museu; por essa razão, o segurança não volta à sala onde o homem o aguarda com a presteza que desejava, mas volta, e é isso que importa. Traz um copo d’água na mão, sobre um pires; não quer respingar o chão. Pelo rádio, pedira a um colega para que se dirigisse ao local, para ver o viejo, mas quando entra na sala novamente não encontra mais ninguém a não ser o velho, na posição em que o deixara. Agacha-se e repara prontamente que, afinal, não está como o deixara: o velho está imóvel, de olhos arregalados, inertes, morto. É isso, o viejo está morto! Levanta-se num rompante e quase deixa cair o pires e o copo. Pede ajuda pelo rádio e ganha coragem para observar o homem novamente. Os olhos do cliente estão fixados no quadro que contemplara durante horas a fio em vida e, no chão, junto ao corpo, há uma carta amarrotada e uma seringa vazia. Não resiste a pegar a carta, que está escrita em espanhol; depois de lê-la, levanta os olhos com a expressão tensa de quem carrega um enorme peso nos ombros. Por Santiago! Deus nos livre e guarde!» In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia SEmergência/JDACT