terça-feira, 14 de maio de 2019

A Sádica Nostalgia das fogueiras do Santo Ofício (maldito): o processo judicial contra a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Francisco Topa «O primeiro aspecto menos conhecido tem a ver com a duração do processo: sete anos e meio, o tempo que separa a primeira peça, datada de 17-I-1966, da última, de 27-VI-1973»

Cortesia de wikipedia e jdact

Resumo
«O artigo aborda um caso concreto da limitação da liberdade de impressa no Estado Novo português: o processo judicial contra a Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica publicada em 1966 pela poetisa Natália Correia (1923-/-1993)».

«Nos seus contornos gerais, o modo de funcionamento e os efeitos da censura no período do Estado Novo português são bem conhecidos, o mesmo acontecendo com a sua repercussão sobre a criação literária. Apesar disso, continuam a faltar trabalhos aprofundados sobre casos concretos. É um pequeno contributo nesse sentido que este artigo procura dar, abordando o processo Judicial (depositado na Torre do Tombo: Tribunal de Comarca de Lisboa, 4.º Juízo Criminal, Processo n.º 90 / 1966) que teve por base a Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica (Correia, 1966), no qual figuraram como réus Natália Correia, a organizadora, Fernando Ribeiro Melo (1941-/-1992), o editor, e alguns dos poetas com textos incluídos no volume e que estavam vivos à época. Com efeito, há neste caso uma série de elementos ignorados e que vale a pena revelar e tomar como motivo de reflexão, numa época em que quase todos os protagonistas já desapareceram, e, em muitos casos, foram esquecidos, e em que outras formas de censura e de vigilância do pensamento se vão impondo.
O primeiro aspecto menos conhecido tem a ver com a duração do processo: sete anos e meio, o tempo que separa a primeira peça, datada de 17-I-1966, da última, de 27-VI-1973. Aquela é o despacho que manda instaurar procedimento criminal contra os responsáveis da Antologia, com o argumento de que se trata (…) em cada um dos seus escritos, especialmente dos inéditos da autora e de outros que ela divulgou, e no seu conjunto [de] um caso de evidente ultraje à moral pública. (f. 2). O último elemento é o Auto de Inutilização [pelo fogo] do Livro Denominado Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (f. 491), em que foi oficiante o juiz corregedor João Sá Alves Cortez, que chegaria a juiz do Supremo Tribunal de Justiça em Setembro de 1984, e o adjunto do Procurador da República Carlos Manuel Costa Saraiva. Com a referência a este aspecto não quero sugerir apenas que a lentidão da máquina judicial não é exclusiva da democracia; quero sobretudo pôr em evidência uma das peripécias mais interessantes do processo, a existência de dois inquéritos e de duas acusações, devido a um erro na primeira fase, detectado e declarado pelo ajudante (termo da época) do Procurador da República no 4.º Juízo Criminal de Lisboa.
O segundo aspecto menos conhecido tem a ver com os elementos concretos da acusação. Depois de uma fase de interrogatório na subdirectoria da Polícia Judiciária de Lisboa, que começa a 18-I-1966 com Natália Correia, a acusação será feita a 9-VII-1966, vindo assinada por Fernando Lopes Melo. No seu ponto 4, lê-se o seguinte:

A publicação do referido livro é uma empresa dolosa de todos os arguidos, principalmente da Natália Correia e do Bento Melo, com mero intuito de explorar a desmoralização (sobretudo da juventude) sob o disfarce de apologia da liberdade, boa-fé, consciência (sic) límpida, cultura, obra de erudição e de civismo (f. 59v)

Mais à frente, no ponto 12, acrescenta-se:

Os escritos e os desenhos do mencionado livro que, segundo o consenso da generalidade das pessoas, são pornográficos, torpes, obscenos e de linguagem despejada conscientemente ofenderam publicamente, e podem continuar a ofender, o pudor geral, a decência pública, os bons costumes, o pudor sexual, a moralidade pública, // revelando até um propósito ultrajante. (f 60v-61)»

In Francisco José Jesus Topa, A Sádica Nostalgia das fogueiras do Santo Ofício: o processo judicial contra a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, Revista Historiae, Universidade do Porto, Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, Espólio de Natália Correia, Torre do Tombo, Tribunal de Comarca de Lisboa, 4.º Juízo Criminal, 2015.

Cortesia de RHistoriae/UdoPorto/TorredoTombo/JDACT